domingo, 18 de agosto de 2013

Baú de ossos


O mineiro Pedro Nava (1903/1984) foi médico famoso e filho de médico também famoso. Foi intelectual participante da vida literária brasileira, amigo de Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e outros grandes do modernismo brasileiro. Foi pintor e poeta bissexto, tendo seus versos apreciados pela crítica especializada. Aos 65 anos, aposentado da medicina, decidiu empreender uma obra memorialista extensa, composta de seis grossos volumes, (dos quais li, por enquanto, Baú de Ossos) em que aponta aspectos de sua vida familiar desde a infância até próximo a sua morte. As memórias de Pedro Nava podem ser, em parte, as nossas memórias. O memorialista entrelaça de tal modo os fios de sua memória com os da vida brasileira, que se torna difícil estabelecer exatamente onde acaba esta e onde começam aquelas.

Baú de ossos (1972) reconstitui a genealogia dos antepassados e os primeiros anos da infância do autor. Nava realiza um panorama da sociedade e da cultura brasileiras no século XIX e no início do século XX. Suas memórias se iniciam com a descrição dos antecedentes genealógicos da família do autor, divididos entre Minas, o Nordeste e os burgos e castelos europeus onde viveram seus antepassados aristocráticos. Em seguida, sempre entremeando fatos históricos, observações pitorescas e anedotas familiares, o autor narra acontecimentos vividos até seus oito anos de idade, marcados pela traumática morte de seu pai. .A obra do médico Pedro Nava vem da oralidade. Da memória dos que envelhecem surge o elemento básico na construção da tradição familiar. Esse folclore jorra e vai vivendo do contato do moço com o velho. Só o velho pode suscitar de repente no menino que está escutando e vai prolongar por mais  sessenta anos a lembrança que lhe chega, não como coisa morta, mas como flor perfumada e colorida, límpida e nítida, como o mágico que abre a caixa dos mistérios na cor dos bigodes, no corte do paletó, na morrinha do fumo, no ranger das botinas de elástico, no andar, no pigarro, no jeito. E com o evocado vem o mistério das associações trazendo a rua, as casas antigas, outros jardins, outros homens, fatos pretéritos, toda a camada da vida de que o vizinho era presença inseparável e que também renasce quando ele revive – porque um  e outro são condições recíprocas. Costumes de avô, responsos de avó, receitas de comida, crenças, canções, superstições familiares duram e são passadas adiante nas palestras de depois do jantar, nas tardes de calor, nas varandas que escurecem; nos dias de batizado, de casamento, de velório.

A Baú de ossos seguiram-se, num intervalo de pouco mais de dez anos, Balão Cativo (1973), compreendendo o período entre o retorno para Minas Gerais após a morte do pai e o internato no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. O autor aborda os anos decisivos do final da infância e a adolescência. A descoberta do sexo e da literatura, a amizade marcante dos novos colegas e o dia a dia vibrante do Rio antigo; Chão de ferro (1976) aborda principalmente a vivência carioca do autor mineiro na primeira metade do século XX. O narrador se desloca de trem entre dois polos - no Rio está o colégio interno; em Minas, as férias com a família e, posteriormente, a faculdade em que ingressa em 1921. Não são polos meramente geográficos, mas dimensões existenciais, afetivas, intelectuais, sociais, culturais e civilizatórias distintas. Concentrando ações transcorridas entre 1916 e 1921, 'Chão de ferro' se abre e se fecha descrevendo aulas no tradicional e reputado colégio Pedro II e na Faculdade de Medicina;  Beira-mar (1978) retrata a vida em Belo Horizonte no período que vai de 1921 a 1926. Nava descreve seu curso na Faculdade de Medicina, a vida estudantil, que transcorria tranquila na então pacata capital mineira. Reconstitui também uma fase importante da vida literária em Minas, ao narrar com detalhes as conversas do grupo de 'A Revista', formado por nomes como Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, João Alphonsus, Emílio Moura, Milton Campos, Abgar Renault entre outros; Galo-das-trevas (1981) divide-se em duas partes. Na primeira, que chamou de 'Negro', ele faz um resumo de sua vida, com observações sobre o presente que o projetam frequentemente no passado. Na segunda parte, 'O Branco e o Marrom', conta o início de sua carreira, em 1928, quando, inexperiente ainda, teve de enfrentar as difíceis condições de vida de médico do interior, viajando em lombo de burro e improvisando para salvar vidas humanas. Depois, com a volta a Belo Horizonte, as lembranças se estendem até a revolução de 30; Círio perfeito (1983) abrange o período que se estende de 1930 a 1940. A revolução, a sua experiência no magistério, a saída de Minas e o encontro com o Rio de Janeiro; por último, Cera das almas, interrompido com a morte do autor em 1984, mas editado em 2006, mostra a passagem do autor pela Policlínica Geral do Rio de Janeiro, na década de setenta, além de revelar o método de criação do memorialista.
 
Ler Baú de ossos torna-se leitura interessante, se o leitor gostar do gênero memorialístico e das crônicas da vida familiar e social brasileira. O autor diferencia suas memórias do estilo tradicional, pela ironia com que descreve algumas pessoas e fatos. Os dois primeiros capítulos poderão parecer cansativos, devido à exaustiva enumeração e descrição de sua árvore genealógica paterna (primeiro capítulo) e materna (segundo capítulo). A partir daí, flui de forma agradável e interessante.

                        paulinhopoa2003@yahoo.com.br
 
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Pedro Nava. Baú de ossos. SP, Cia. das letras, 2012, 512 pp.  R$ 54,50

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