domingo, 2 de fevereiro de 2014

O Voo da Madrugada

O voo da madrugada, de Sérgio Sant'Anna (1941), é um livro híbrido. Divide-se em três partes, a primeira e a terceira são contos e estão intercaladas pela novela O Gorila, também dividida em três partes. Os temas de quase todas as histórias são a solidão e a morte, tratadas algumas vezes com humor irônico, para abrandar a atmosfera sombria das narrativas.
O personagem do conto Invocações afirma que sempre pairou no mundo a pergunta se existe o Diabo. Talvez ele exista, se existir Deus. Mas, ainda que houvesse uma possibilidade apenas, entre milhões, de que o Diabo existisse e pudesse apossar-se da alma de alguém em troca de uma grande fortuna artística ou de outra ordem, não se atreveria a evocá-lo. Mesmo que a obra não passasse de um simples conto, e o contista um pequeníssimo Fausto.  O que não quer dizer que ele, o contista, quando em desespero, não possa apelar para outras invocações, como a morte, por exemplo. Pois a existência de um ser para além da morte é algo em que se pode acreditar ou não, mas que os textos que lhe vieram à cabeça, independentemente do esforço que lhe custou a escrita e do seu modesto valor, sofreram em tudo a interferência da própria invocação e estão com ela intimamente relacionados. Disso não há a menor dúvida, como se verá nos contos de O voo da madrugada, Prêmio Jabuti de 2004, na categoria contos.
Na viagem que inicia esses contos de Sérgio Sant'Anna, um homem embarca num voo noturno em companhia de alguns cadáveres e de pessoas enlutadas. O absurdo da situação , porém, deve-se mais às especulações íntimas do personagem que narra, misto de atração e repulsa pela morte. Seus fantasmas interiores desdobram-se em fantasia, memória, alucinação e desejo sexual, sempre de forma ambígua.

 A solidão que persegue os personagens do livro de forma desesperada leva-os, muitas vezes,a  pensar em dar cabo da existência. À obsessão pela morte, associa-se forte carga erótica e também a busca pela forma perfeita.  Sedução, volúpia, imaginação, fantasia, morte, nos textos que fecham o livro, retomam essas figuras femininas, defendendo uma arte ligada de forma íntima à vida. A composição da escrita de Sérgio Sant'Anna alimenta-se de forças artísticas criadoras e destrutivas, indissociáveis, que permitem alcançara a fusão perfeita - morte, mas também viagem e delírio, como um voo na madrugada.
O autor nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Ganhou três prêmios Jabuti.

                                                paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Sérgio Sant'Anna. O voo da madrugada. SP, Cia das Letras, 2003, 248 pp. R$ 39,50

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