domingo, 26 de janeiro de 2014

Trilogia Suja de Havana

Ninguém goza mais do que ela. Assim ficamos unidos por muito tempo. Quando tirei o pau, estava melado de merda e ela sentiu nojo. Eu não. Eu tinha o cínico alerta, não dormia nunca. O sexo não é para gente escrupulosa. O sexo é um intercâmbio de líquidos, de fluidos, saliva, hálito e aromas fortes, urina, sêmen, merda, suor, micróbios, bactérias. Ou não é. Se for apenas ternura e espiritualidade etérea, não passa de uma paródia estéril do que poderia ser.  Nada. (...) Fome.  Claro, só tinha no estômago um chá, uma fatia de melão e um café. Em casa comi um pedaço de pão com outro chá. Já estava me acostumando com muitas coisas novas na minha vida. Estava me acostumando com a miséria. A encarar as coisas como elas são. Treinava para abandonar o rigor, porque senão não sobreviveria. Sempre vivi carente de alguma coisa. Inquieto, querendo tudo de uma vez, lutando rigorosamente por algo mais. Estava aprendendo a não ter tudo de uma vez. A viver quase sem nada. Caso contrário, continuaria com a minha visão trágica da vida. Por isso agora a miséria não me afetava tanto.

Assim vive o personagem de Trilogia suja de Havana, que tem o mesmo nome do autor, Pedro juan Gutierrez. O livro é composto de crônicas que se passam no centro de Havana, onde reside grande parte da população que vem do interior para a capital, sob a crise de alimentação e moradia que assolou Cuba, na década de 90 do século passado, quando a União Soviética foi extinta e Cuba teve de se virar pelo avesso. Foi a partir daí, por exemplo, que os cubanos passaram a investir no turismo como uma das formas de abrandar um pouco a forte crise econômica da ilha.
O Pedro juan do livro mora em um quarto no terraço, em Centro Havana. Um bom lugar. O problema lá são os vizinhos e o banheiro coletivo. Lá vivem negros, velhas decadentes, algumas putas jovens, outras já destruídas, que foram putas de luxo em outros tempos; velhos bêbados e um monte de gente de Guantánamo que emigra em bandos e ninguém sabe o que fazer para caber vinte num quarto.Em Guantánamo entravam para a polícia e logo depois conseguiam transferência para Havana e levavam junto a família inteira. E se viram para morar todos num quarto de quatro metros por quatro, não se sabe como. O banheiro é o mais nojento do mundo, a merda chega até ao teto. Nesse banheiro cagam, mijam, tomam banho diariamente nada menos que duzentas pessoas. Sempre há fila. Mesmo que alguém esteja se cagando, tem que entrar na fila. Alguns, para fugir da fila, cagam  num papel e jogam o pacote de merda no terraço do edifício ao lado, que é mais baixo. Ou na rua. Tanto faz. Um desastre! Mas, quem  está em baixa, tem que se acostumar.

 Pedro Juan Gutiérrez, o autor, acredita que a arte só serve para alguma coisa se for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira pode nos mostrar a outra face do mundo, aquela que nunca vemos ou nunca queremos ver para não causar incômodos à nossa consciência. Em Havana tudo está contaminado. Em última instância, são todos mestiços. A agitação é subterrânea. Basta arranhar um pouco a superfície e tudo explode, com a mesma brutalidade. O autor nasceu em Cuba em 1950 e exerceu os mais diversos ofícios: vendedor de sorvetes e jornais, instrutor de caiaques , cortador de cana-de-açúcar, operário agrícola, soldado, locutor de rádio e jornalista. Trilogia suja de Havana ganhou projeção internacional em 1998. Depois disso, escreveu mais quatro livros do chama Ciclo do Centro de Havana: O rei de Havana, O insaciável homem-aranha, Animal tropical e Carne de cachorro. Todos os livros desse ciclo constituem o relato sobre a vida em Cuba nos anos 90.  Através de sua literatura, conhecemos uma Cuba contraditória, vibrante e sensual, mas ao mesmo tempo um país duro e perigoso.

Gutiérrez vive em um prédio velho no centro de Havana e se diz simpatizante do regime cubano (Trilogia suja de Havana não pôde ser publicado em Cuba, inicialmente, mas na Espanha) por isso nega-se a responder a perguntas sobre a repressão e a censura em seu país. Faz parte de uma elite cultural, artística e esportiva que divulga Cuba no exterior. Talvez pudesse ganhar bem melhor exilando-se em algum país de língua espanhola, mas certamente não seria Pedro Juan Gutiérrez de seus personagens alegres, irreverentes e patéticos diante das dificuldades de um país pobre.
                                                     paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Pedro Juan Gutiérrez. Trilogia suja de Havana. Rio, Objetiva, 2008, 382 pp. R$

 

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