domingo, 3 de agosto de 2014

De gados e homens

A escritora fluminense Ana Paula Maia (1977) não gosta de se alongar muito em uma história. Há um tempo para escrever um livro, ela disse em uma entrevista ao jornal Rascunho. Gosta das coisas acontecendos. A cada capítulo deve ter alguma coisa acontecendo. Acha meio chato quando o personagem está com uma dúvida e fica cinco capítulos com essa dúvida. Ela disse que acha Proust uma coisa chatérrima.

O problema, entretanto, é quando o leitor vê coisas acontecendo a todo momento e quando termina o livro se pergunta: tá, mas e daí?

O enredo do curto romance De gados e homens gira em torno de um abatedouro de carne bovina, onde homens rudes agem de forma quase desumana. Edgar Wilson está apoiado no batente da porta do escritório do seu patrão, que conclui um telefonema aos berros, já que desde cedo aprendeu a berrar, quando solto no pasto, ainda bem menino, disputava com o bezerro a teta da vaca. O escritório não passa de um cômodo espremido ao lado do setor de bucharia do matadouro. O patrão lhe pede que vá até a fábrica de hambúrguer fazer uma cobrança. Edgar Wilson alerta que há gado a ser abatido, mas o patrão passa a tarefa para o Zeca.
Edgar Wilson acena com a cabeça e apanha a ordem de cobrança. Segue por um corredor fétido e mal iluminado e ao virar à direita entra no boxe de atordoamento, local em que trabalha muitas horas por dia. A fila de bois e vacas é sempre longa. Um funcionário abre a portinhola e o boi que já passou pela inspeção e pelo banho entra devagar, desconfiado, olhando ao redor. Edgar apanha a marreta. O boi caminha até bem perto dele. Edgar olha nos olhos do animal e acaricia a sua fronte. O boi bate uma das patas, abana o rabo e bufa. Edgar cicia e o animal abranda seus movimentos. Há algo nesse cicio que deixa o gado sonolento, intimamente ligado a Edgar Wilson, e dessa forma estabelecem confiança mútua. Com o polegar lambuzado de cal, faz o sinal da cruz entre os olhos do ruminante e se afasta dois passos para trás. Suspende a marreta e acerta a fronte com precisão, provocando um desmaio causado por uma hemorragia cerebral. O boi caído no chão sofre de breves espasmos até se aquietar. Não haverá sofrimento, ele acredita. Agora o bicho descansa sereno, inconsciente, enquanto é levado para a etapa seguinte por outro funcionário, que o suspenderá de cabeça para baixo e o degolará.
 Vai até o setor de triparia e chama por Zeca, que imediatamente acata sua ordem. É com o coração pesaroso que Edgar vê, minutos depois, o rapaz, sorridente, seguir até o boxe de atordoamento ao sair da sala de Milo. Zeca é um garoto de dezoito anos, perturbado. Gosta de ver o animal sofrer. Gosta de matar. Se prepara para a tarefa quando Edgar entra no boxe e o adverte: não deixa o bicho sofrer. Zeca apanha a marreta, faz sinal para que o funcionário deixe o boi entrar. Quando o animal fica frente a frente com ele, a marretada propositalmente não é certeira, e o boi, gemendo, caído no chão, se debate em espasmos agonizantes. Zeca suspende a marreta e arrebenta a cabeça do animal com duas pancadas seguidas, fazendo o sangue respingar em seu rosto.
Edgar Wilson não responde à afronta de Zeca. Vira de costas e caminha até o banheiro, onde troca de roupa. Veste uma calça jeans e uma camisa quadriculada de botões. Após apanhar as chaves, segue até a caminhonete e lamenta o rádio quebrado do carro. Ao retornar, já e fim de tarde, estaciona a caminhonete do pátio do matadouro, entra no escritório e entrega o cheque ao Milo. No boxe de atordoamento repara na quantidade excessiva de sangue e em pedaços de crânio esfacelado. Entra no banheiro do alojamento. Espera que reste apenas o Zeca no banho. Com a marreta, sua ferramenta de trabalho, acerta precisamente a fronte do rapaz, que cai no chão em espasmos violentos e geme baixinho. Nenhuma gota de sangue foi derramada. Seu trabalho é limpo. No fundo do rio, com restos de sangue e vísceras de gado, é onde deixa o corpo de Zeca.
Cumprido seu dever, ele vai para a cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado.
 Ao terminar o primeiro capítulo do livro achei que ia ser arrebatado por uma narrativa tensa, instigante. A orelha do livro diz isso e diz que cativará o leitor pelo terror, pela agonia, e pelo espanto. Mas a violência imposta no início do romance se esvai em um enredo que parece beirar um real maravilhoso descosturado, com o rio morto cuja água fica salgada, vacas libanesas misturadas a vacas israelenses, também as vacas que se suicidam. O assassinato do Zeca, relatado acima, fica por isso mesmo.. Li matérias em jornais literários enaltecendo a prosa de Ana Paula Maia neste romance, mas tudo parece, agora, resenha de amigos. Eu esperava mais.

                             paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Ana Paula Maia. De gados e homens. Rio, Record, 2013, 128 pp, R$ 30,00


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