domingo, 19 de outubro de 2014

A desumanização

A Desumanização, de Valter Hugo Mãe se passa na Islândia. Desumanização no caso aqui, refere-se a espiritualidade. A pequena Halla nos conta que é irmã gêmea de Sigridur,  uma morta. Sendo igual a ela, não discernia se  estava morta e a outra viva. Sabia que aceitar a morte da irmã era uma forma de egoísmo. Mas isso ela só elaborou mais tarde, ao longo da vida dura que levou ao lado de uma mãe nervosa e culpada pela morte da filha. E de um pai afetivo, mas que se distanciava aos poucos. Tinha como amigo Einar, um ser débil, que se uniu a ela depois que a engravidou e cujo filho perdeu. Para Halla, a vigília dos dias não permitia que a raiva acabasse. Não saberia aceitar a morte da irmã. Sentia muita revolta. Sempre à espera de um sinal. Ficava esperando que um dia pudesse conversar com a irmã desaparecida, igual às verdadeiras histórias de fantasmas, pois as duas eram parte de um mesmo todo. A irmã certamente iria lhe falar com palavras bem concretas acerca da tristeza ou da felicidade que deviam nutrir.

Quando enterraram sua irmã gêmea, disseram a ela que a haviam plantado, mas nasceria outra vez, igual a uma semente. E adormeceu achando que sua irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas. Achou que a morte seria igual à imaginação, entre o encantado e o terrível, cheia de brilhos e susto, feita de ser e caos.  A morte das crianças era assim, disse-lhe a mãe. Quando Halla visitava o lugar onde Sigridur fora enterrada, sabia que ela e sua irmã comungavam das emoções. Diferiam em poucas coisas. Tinham, até, honra, uma cumplicidade para afinar as condutas e as expectativas. Caíam-lhe os dentes de leite ao mesmo tempo. Halla já muito explicara acerca da impressão da terra sobre ela, a água, o ruído das ovelhas pastando. Mas não se decidia acerca do que seria sua irmã sentindo. Onde estava, se estaria apenas ali a uns palmos do chão, se estaria longe a se sentir bem ou se andaria aflita, matando e morrendo cada vez mais e carregada de ódio. Halla sentia nada. Sobretudo medo e nada. Halla era gêmea da morte. Crianças espelho. Tudo em seu redor se dividiu por metade com a morte.

Valter Hugo Mãe disse em uma entrevista que não quer tratar o leitor como estúpido. Por isso mesmo, A Desumanização é um romance que se utiliza de todas as possibilidade do discurso. Sobre por que da história se passar na Islândia, disse que o lugar é fundamental para conferir a imagem, aquilo que vemos através das palavras. Buscou um espaço que fosse fisicamente uma proposta visual desafiante para as palavras. Sua motivação interna tinha que ver com a procura da questão da solidão. Uma reflexão extremada da solidão. Um lugar perdido no norte do planeta, frio, isolado, pouquíssima gente, isso suscita uma espiritualização da existência, a ponto de fazer com que o criador ou a natureza sejam efetivamente a companhia, porque o ser humano ali não se companha. Uma menina perde sua irmã gêmea, desacompanhada, busca uma compensação nas palavas e na natureza da Islândia para essa solidão. Se Deus existir é uma menina e o planeta é uma menina e as coisas que se multiplicam e advêm da fertilidade são femininas.

               paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Valter Hugo Mãe. A Desumanização. SP, Cosac Naify, 2014, 224 pp. R$ 25,00


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