domingo, 12 de outubro de 2014

Gente independente

Quem me mostrou o escritor islandês Halldór Laxness foi Valter Hugo Mãe em seu romance Desumanização (próxima postagem).Halldór parece nos dizer em seu longo, belo e poético romance Gente independente, que um homem não é independente a menos que tenha coragem de resistir sozinho. Nunca  devemos desistir enquanto estamos vivos, mesmo que roubem tudo da gente. Quando não há mais nada,   sempre se pode dizer que o ar que respiramos é nosso, ou pelo menos a gente pode dizer que o toma de empréstimo. Quem fica sozinho é o mais forte. O homem nasce sozinho. O homem morre sozinho. A capacidade de resistir sozinho não é a perfeição da vida, o objetivo? Lendo o livro, o leitor poderá entender por que Bjartur pensa dessa forma.

Bjartur da Casa Estival conseguira comprar uma propriedade na zona rural da Islândia, desvalorizada pelo fato de os habitantes do lugar acreditarem que havia espíritos perigosos nos penhascos próximos ao local. Bjartur não acreditava em espíritos que pudessem interferir em seu destino.  Era dono de uma propriedade. No prazo de doze anos pagaria o último centavo pela propriedade, um total de trinta anos. Era um rei em seu próprio reino. Sua mulher era sua cônjuge legal, embora não fosse virgem quando casaram. Ásta Sólilja,  suposta filha de um relacionamento anterior da mulher o transformará de forma definitiva ao final da narrativa.

Leia esse belo trecho que relata uma conversa do neto de Bjartur com a avó, sobre a morte:

Desde o momento em que ele dera a primeira piscadela sonolenta até o instante em que as pálpebras pesadas finalmente se abriam, não eram meramente horas que se seguiam a horas; não, século após século pela vastidão incomensurável da manhã, mundo após mundo, como nas visões de um cego, a realidade seguia-se à realidade e não era mais realidade - a luz tornava-se mais brilhante. Tão distante está o dia do inverno em sua própria manhã. Mesmo sua manhã está distante de si mesma. O primeiro frágil vislumbre no horizonte e a claridade plena na janela na hora do café são como dois começos diferentes, dois pontos de partida. E, uma vez que na aurora até sua manhã está distante, o que ser seu anoitecer? Manhã, meio-dia e tarde estão tão distantes quanto os países que sonhamos ver quando crescermos; o anoitecer tão remoto e irreal quanto a morte sobre a qual o caçula ficou ontem sabendo, a morte que leva as criancinhas de suas mães e faz o ministro enterrá-las no jardim do intendente, a morte da qual ninguém volta, como nas histórias da avó, a morte que chamará você também, quando ficar tão velho que se torne criança novamente.
- Então são apenas os bebês que morrem? - perguntou ele.
Por que perguntara?
Foi porque ontem seu pai havia atravessado as fazendas com o bebê que tinha morrido. Ele carregara-o numa caixa nas costas para ser enterrado pelo ministro e pelo intendente. O ministro cavaria um buraco no pátio da capela do intendente e cantaria uma canção.
- Algum dia serei bebê de novo? - perguntou o menino de sete anos.
E sua mãe, que lhe havia cantado extraordidinárias canções e lhe falado tudo sobre os países estrangeiros, respondeu debilmente do leito em que estava acamada.
- Quando uma pessoa fica muito velha, torna-se novamente um bebezinho.
- E morre? - perguntou o menino.
Foi uma corda em seu peito que se rompeu, uma dessas delicadas cordas da infância que se rompem antes que a pessoa tenha tempo de perceber que são capazes de soar; e essas cordas não soam mais; doravante são apenas uma lembrança de dias incríveis.
- Todos nós morremos.
Mais tarde nesse dia, ele tocara no assunto novamente, dessa vez com a avó:
- Eu sei de alguém que  nunca morrerá - disse ele.
É verdade, meu bichinho? - perguntou ela, perscrutando-o de cima do nariz com a cabeça inclinada para o lado, como era seu costume quando estava olhando para alguém. - E quem seria este?
Meu pai - respondeu o menino, decidido. No entanto, ele não tinha certeza absoluta de que não estaria cometendo um erro, porque continuou olhando para a avó com olhos interrogativos.
- Ah, ele morrerá, claro que morrerá - rosnou a velha, impiedosa, quase exultante, e soltou um sonoro suspiro pelo nariz.
Essa resposta apenas despertou a teimosia do menino, que perguntou:
- Vovó, a colher de pau vai morrer um dia?
- Agora chega - explodiu a velha, como se achasse que ele estivesse zombando dela. 
- Mas, vovó, e a panela preta? Ela vai morrer um dia?
- Tolice, criança - replicou ela. - Como pode uma coisa morrer quando já está morta?
- Mas a colher e a panela não estão mortas - disse o garotinho. - Eu sei que elas não estão mortas. Quando acordo de manhã, sempre as escuto conversando.
Que bobagem fizera: havia revelado um segredo que só ele conhecia, pois só ele descobrira, durante a que talvez tenha sido uma das mais notáveis todas as vastidões matinais do tempo, que as caçarolas e panelas e outros utensílios de cozinha mudavam de forma e se transformavam e homens e mulheres. De manhã cedo, quando ficava deitado e acordado, muito antes dos outros, ouvia-os conversando entre si com a compostura séria e o vocabulário solene e exclusivo dos utensílios de cozinha. Tampouco foi apenas por acaso que ele se referira primeiro à colher de pau, pois a colher de pau, afinal de contas, é uma espécie de aristocrata entre os utensílios,; raramente é usada, e quase sempre para a sopa de carne, passa a maior parte do tempo pendurada na parede em imaculada limpeza e ócio decorativo. Entretanto, assim que é trazido para baixo o papel que desempenha na panela é o mais notável. O menino, portanto, considerava a colher de pau com particular respeito e achava que não havia ninguém à qual ele pudesse compará-la senão com a esposa do intendente. A panela preta, que quase estava cheia até à borda e às vezes tinha uma crosta queimada no fundo e muita fuligem embaixo, a panela preta não era ninguém mais que o intendente de Mýri, cuja boca sempre estava cheia de tabaco. Era fácil ver que às vezes ele fervia e devia haver um fogo em seu interior, e que ele tinha uma esposa de intendente para mexê-lo para que ele não transbordasse em ocasiões especiais. o  esmo acontecia com as outras coisas da cozinha: no escuro, transformavam-se em homens e mulheres.

Halldór Laxness (1902/1998) ganhou o Nobel de Literatura de 1955

A edição do livro esgotada, mas você poderá encontrar o livro em algumas livrarias que ainda o têm em estoque. Vá ao buscapé


          paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Halldór Laxness. Gente independente. Rio, Globo, 2004, 680 pp, R$ 50,00








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