domingo, 5 de outubro de 2014

A sagração dos ossos


Ivan Junqueira morreu agora, em 03 de julho.  A sagração dos ossos, livro de poemas lançado em 1994, que lhe deu o Prêmio Jabuti, resgata a lembrança dos mortos, da vida que foi , portanto não é mais. A infância para o poeta é uma canoa que naufraga e a bordo não traz senão fantasmas.





Espelho

O duro espelho me reflete:
olhos míopes que pouco enxergam,
lábios que muita vez se cerram,
rugas que me entalham a testa,

as pernas magras, talvez lerdas,
as mãos ossudas e irrequietas,
a barba cujo fio enfeza,
os pés que percorreram léguas.

E tudo mais que dele emerge,
de muito pouco ou nenhum préstimo,
pois logo no aço o tempo - névoa -
dissolve os traços mais perpétuos.

Mas algo de mim, certa inépcia
para entender o que me cerca,
ali se furta ao olho pérfido
de quem se crê o seu intérprete.

E não só: sequer uma réplica
da luz que em mim sucumbe à treva
no álgido espelho reverbera
ou deixa um risco de seu périplo.

Algo de mim: renirsism répteis,
algum antigo e inútil verso,
a alma de um rei que, sem remédio,
se consumia na quimera

de submeter servos e glebas,
mas que findou seus dias déspotas
em meio às moscas da taverna
e ao pouco pó de algumas vértebras.

Todo esse lodo e essa miséria...
E deles sequer um reflexo,
como se o espelho, mais que o inferno,
lhes recusasse alívio ou crédito.

Olho-me ali, e nem o espectro
de quem sou (ou fui) se revela;
vejo-lhe apenas a epiderme,
mas não o fundo, que é secreto.


Poeta de qualidade aprimorada, mas pouquíssimo lido, também adquiriu fama de excelente tradutor, especialmente da obra de T. S. Eliot, Dilan Thomas e Baudelaire (As Flores do mal teve inúmeros comentários honrosos graças à tradução de Junqueira). No programa de televisão em homenagem ao poeta, na data de sua morte (Globonews), o poeta falava que ser poeta é uma destinação. Tentou fugir da poesia, por que o poeta tem destino difícil, sofre muito, há que se pensar que não haverá recompensa financeira, já que poesia não vende. Mas ele não conseguiu e tornou-se um poeta maior muito pouco lido, como toda poesia é.

Seu primeiro ímpeto para traduzir poesia se deu quando leu pela primeira vez Os quatro quartetos, de T. S. Eliot, no original. Eliot lhe dizia tudo que o poeta Junqueira gostaria de dizer em poesia. Então, começou a traduzi-lo para seu bel prazer, para se aproximar mais da poesia do escritor anglo-americano. Aconteceu que Antônio Houaiss leu a tradução e se apaixonou. E o livro foi publicado em português. A partir daí cresceu o respeito da crítica sobre o trabalho de tradução do poeta brasileiro. Traduziu também Baudelaire (As flores do mal ganhou prêmio de melhor tradução), Dilan Thomas e Margueritte Yourcenar. 

O poeta falou também que todo tradutor deve levar em conta que se pode traduzir o que o poeta quis dizer, mas nunca o que ele disse. Num certo sentido a poesia seria intraduzível. Mesmo assim, deve acreditar que possa traduzi-la. Em relação ao processo criativo, não se poderia confundir propriamente intuição com inconsciente. Não são campos opostos, são terrenos tangenciais. Há uma participação muito grande do inconsciente na intuição. Só que a intuição não é um processo de transe mediúnico, dentro do processo de intuição. Há todo um processo de escolha intelectual, de percepção intelectual, podendo ser mais ou menos refinada, dependendo da formação intelectual do poeta.

Ivan Junqueira foi membro da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a João Cabral de Melo Neto, de quem teria sido influenciado. Além de poeta, foi ensaísta brilhante. Ao morrer, deixou no prelo dois livros que serão editados em breve. 

Como toda obra literária de qualidade, sua poesia encontra-se praticamente esgotada, uma das exceções é O outro lado, Ed. Record. Você pode encontrá-la nos sebos virtuais por preços bem acessível. Recomendo-lhes A sagração dos ossos, Ed. Civilização Brasileira e Poemas reunidos, Ed. Record. Certamente sua obra deva ser relançada em breve.
O enterro dos ossos

Não pude enterrar meus mortos:
Baixaram todos à cova
Em lentos esquifes sórdidos,
Sem alças de prata ou cobre.

Nenhum bálsamo ou corola
Em seus esquálidos corpos:
Somente uma névoa inglória
Lhes vestia os duros ossos

Foram-se assim, nus e pobres,
Sem deixar feudo ou espólio,
Ou mesmo uma ínfimajóia
Que lhes trouxesse à memória

O frágil brilho de outrora,
Quando lhes coube essa sobra
Que Deus larga pouco importa
Nas mãos de quem caia a esmola.

Passo a passo vida afora,
Sempre os vi em meio às górgonas
Da loucura cujo pólen
Lhes cegou a alma e os olhos.

Não pude enterrar meus mortos.
Sequer aos lábios estóicos
Lhes fiz chegar uma hóstia
Que os curasse dos remorsos.

Quer esquecê-los. Não posso:
Andam sempre à minha roda,
Sussurram, gemem, imploram
E erguem-se às bordas da aurora

Em busca de quem os chore
Ou de algo que lhes transforme
O lodo com que se cobrem
Em ravina luminosa
O poeta
O poeta está morto.
Cerrem-lhe as pálpebras,
o olhar absorto,
a boca cheia de tropos
e metáforas barrocas.
Sepultem aquele broto
que em sua garganta rouca
endureceu com o caroço
e a voz outrora doce
lhe afogou em fundo poço.
Deixem-lhe o corpo exposto
para que vejam o que pôde
fazer a morte e sua foice
com aquele que fora
corola, diamante, voo.
O poeta está morto.
Pouco importa agora o sopro
que lhe deu vida e alvoroço,
como tampouco o áspero corvo
que a alma lhe pôs em fogo.
Restam-lhe os versos, poucos,
e as sílabas já sem fôlego
às quais se agarrou com força
porque as ouvia como agouro
de um fugaz e último coro.
O poeta está morto.
Que nos sangrem, garras de osso,
as suas marcas do zorro.


          paulinhopoa2003@yahoo.com.br 
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Ivan Junqueira. A sagração dos ossos. Rio, Civ. Brasileira, 1994. 120 pp.

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