domingo, 16 de novembro de 2014

A artista do corpo

Há quem saiba amar as pessoas depois delas desaparecerem abruptamente. Talvez então possa compreender que sempre manteve uma distância sutil delas, sempre se poupou, só muito raramente expôs seu coração, sempre tecendo redes de dar e receber. Lauren Hartke é uma artista que mescla teatro e mímica e torna o corpo como estátua plástica e viva.

Don Delillo abre o A Artista do Corpo com um casal numa manhã em uma casa enorme à beira de uma praia. Os dois executam ações cotidianas com diálogos soltos, como se cada um se recusasse a sair de si mesmo. As palavras constituem um monólogo sem contexto. Então somos surpreendidos pela notícia de que o homem, um cineasta de origem italiana, havia se matado com um tiro na cabeça sem deixar explicações. Lauren então se fecha para o mundo, decidida a ficar naquela casa da praia até o final do contrato do aluguel a alguns meses.

De repente, um homem esquisito e desconhecido aparece. Ela decide cuidar dele, pois parece perturbado. Então percebe que ele tem atitudes e diálogos que lembram o marido morto. Ela passa a pedir desesperadamente que ele faça coisas como o morto, que diga palavras que ele disse. Ou diga qualquer coisa que lhe venha à cabeça, mas como se fosse ele. Falavam todas as manhãs e ela gravava o que diziam. Mas Lauren sentia que faltava ritmo. As palavras pareciam-lhe desajustadas. O homem não exibia reações faciais às coisas que ela dizia, e isso a confundia. Ela começou a compreender que aquelas conversas não tinham o sentido do tempo, e que todas as referências no nível do não-dito, as coisas que poderia haver entre esse homem e o marido morto não existiam. Então Lauren começa a aproximar-se fisicamente dele, para conhecê-lo melhor. Esse homem misterioso também desaparece da vida.

Tempos depois, uma amiga assiste a uma performance de Lauren,a artista do corpo. Conversando após a performance, a amiga pergunta sobre o marido e o choque do suicídio. Lauren responde que o trabalho saiu diretamente com o que aconteceu com o marido. Em seguida, faz uma coisa que deixa a amiga paralisada. Lauren troca de voz. É a voz dele, do homem nu que ela representara há pouco. Não é uma dublagem, é uma pessoa falando. Está falando com a amiga e o rosto não é bem dela. É capaz de acreditar que está com órgãos genitais masculinos, falsos, como na performance, claro. Lauren pede para ir ao banheiro e a amiga sente que o poder da performance está no corpo da amiga. Às vezes ela faz da feminilidade uma coisa tão misteriosa e forte que engloba os dois sexos e toda uma variedade de estados sem nome. Sua arte na atual performance é obscura, lenta, difícil e às vezes torturante. Mas nunca tem a ver com a agonia grandiosa de imagens e cenários portentosos. Tem a ver com pessoas. A amiga talvez precisasse lhe dizer quem ela era.

Romance surpreendente. Comecei a ler e só parei na última linha do livro. E corri para comprar outros livros de Delillo, considerado pela crítica um dos maiores escritores norte-americanos da atualidade.
        
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Don Delillo. A artista do corpo. SP, Cia. das Letras, 2001, 126 pp, R$ 34,00

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