domingo, 30 de novembro de 2014

Será difícil ler Gregório de Matos?

Tenho frequentemente feito comentários sobre o conteúdo da leitura obrigatória da Ufrgs/2015.Chegou a vez de Gregório de Matos e Guerra. Lembro de uma jornalista comentando a experiência da filha durante o vestibular de 2014 na televisão, dizer que, apesar de ser leiga no assunto ser uma tortura obrigar os jovens adolescentes serem obrigados a estudar Gregório Matos. A jornalista havia lido alguns poemas marcados como leitura obrigatória e se decepcionou com a linguagem "quase ininteligível" do poeta.

Mas é justamente na escola que se deve estudar Gregório de Matos e buscar compreendê-lo de forma acessível. Estudei muito Gregório de Matos com meus alunos do ensino médio, lendo sua poesia. Num primeiro momento, ler sem paradas para marcar palavras difíceis, isso vem depois. Ler para discutir o poema. Ler em voz alta. Os estudantes são espertos e captam muita coisa, surpreendem. Pode-se depois situar Gregório de Matos dentro da cultura do Barroco brasileiro, cujas características estéticas evidenciam comparações abreviadas, antíteses, paradoxos. A questão da forma versus conteúdo. A linguagem poética do estilo barroco é rebuscada por refletir as contradições de um período formal estupendo, com o enaltecimento da forma, durante o Renascimento, para a obscuridade psicológica oriunda da crença autoritária do catolicismo que passou a dominar parte da França, mas especialmente Espanha e Portugal, se espraiando pelas colônias da América Latina. A poesia desbocada de Gregório de Matos é um caso a parte. Tudo o que foi escrito de escárnio e maldizer na Bahia de 1600 era atribuído a Gregório de Matos. Nem tudo era dele.

Vejamos essa poesia religiosa:

Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,
É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha à vaidade,
Vaidade, que todo me há vencido;
Vencido quero ver-me, e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.
  
Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.

Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.

Temos aí uma característica conceitista: o poeta faz uso de argumentos inteligentes usando como sua defesa a verdade expressa na bíblia. O poeta pecador reconhece a ofensa a Deus, devido à vaidade, mas pede o perdão de Deus com a certeza de que Deus, bondoso, certamente irá perdoá-lo.

Outra, com traços evidentes de ironia:

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, 
de vossa alta clemência me despido; 
porque quanto mais tenho delinquido, 
vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado, 
a abrandar-vos sobeja um só gemido: 
que a mesma culpa, que vos há ofendido, 
vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma orelha perdida e já cobrada, 
glória tal e prazer tão repentino 
vos deu, como afirmais na sacra história,

eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, 
cobrai-a; e não queirais, pastor divino, 
perder na vossa ovelha a vossa glória.

Exemplo de sua poesia filosófica: a inconstância dos bens do mundo, a instabilidade das coisas do mundo:

Nasce o sol e não dura mais que um dia. (antítese vida/morte)
Depois da luz, se segue a noite escura, (ant. claro/escuro)
Em tristes sombras morre a formosura, (ant.feio/belo)
Em contínuas tristezas a alegria. (ant. tristeza/alegria)

Porém, se acaba o sol, porque nascia? (dúvida)
Se é tão formosa a luz, porque não dura?
Como a beleza assim se trasfigura?
Como o gosto da pena assim se fia? (sofrimento)

Mas no sol e na luz falta a firmeza;
Na formosura, não se dê constância
E, na alegria, sinta-se tristeza. (ant. tristeza/alegria)

Começa o mundo, enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza:
A firmeza somente na inconstância.

A poesia satírica, onde Gregório de Matos é mais reconhecido:

A Cidade da Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado,
Pobre te vê a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh! se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
que fora de algodão o teu capote!

Essa também:

 A cada canto um grande conselheiro,
 Que nos quer governar cabana, e vinha,
 Não sabem governar sua cozinha,
 E podem governar o mundo inteiro.

 Em cada porta um freqüentado olheiro,
 Que a vida do vizinho, e da vizinha
 Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
 Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

 Muitos Mulatos desavergonhados,
 Trazidos pelos pés os homens nobres,
 Posta nas palmas toda a picardia.

 Estupendas usuras nos mercados,
 Todos, os que não furtam, muito pobres,
 E eis aqui a cidade da Bahia.

Poesia amorosa, com traços de amargor:

Ardor em firme coração nascido!
Pranto por belos olhos derramado!
Incêndio em mares de água disfarçado!
Rio de neve em fogo convertido!

Tu, que em um peito abrasas escondido, 
Tu, que em um rosto corres desatado,
Quando fogo em cristais aprisionado,
Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente?
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai! Que andou Amor em ti prudente.

Pois para temperar a tirania,
Como quis, que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu, parecesse a chama fria.


Esse soneto, muito trabalhado nos compêndios de literatura, difere do lado deprimido do poeta para lançar um tom meio satírico ao poema:

Anjo no nome, Angélica na cara(*),
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

(*) Não se usava, no português antigo, rosto, mas cara.

Então, é tão difícil assim ler Gregório de Matos? Em todos os países a literatura é estudada, mesmo a dita literatura clássica, com respeito, como forma de preservar os valores culturais de um país. Por aqui, percebo que a moderna didática (tenho ranço da didática modernosa) busca incentivar a leitura no aluno, a partir do que ele gosta de ler, quando a função da escola é lhe apresentar outros valores ao lado do que ele gosta de ler.

Precisamos orientar a ler bons autores, sim.

Todos os poemas mencionados aqui pertencem à lista de poemas selecionados para leitura obrigatória da Ufrgs. Se o leitor se interessar, divulgo o site sobre os poemas de Gregórios de Matos selecionados para leitura obrigatória:


http://www.ufrgs.br/coperse/concurso-vestibular/vestibular-2015/leituras-obrigatorias

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