domingo, 19 de fevereiro de 2017

40. Ficções

O escritor argentino Jorge Luís Borges (1899/1986) cresceu entre duas línguas. Foi alfabetizado em inglês, por decisão do pai. O espanhol é ligado à linhagem materna. Tinha ascendência portuguesa por parte do bisavô paterno, que nascera em Portugal.  Ficou cego cedo, aos 58 anos. Mas continuou a produzir sempre, ditando seus textos a seus auxiliares, notadamente sua mãe e depois a esposa, Maria Kodama.
Borges foi primeiro poeta e ensaísta. Seu lado ficcional surgiu mais tarde. 

Viaja à Europa na adolescência, para tratamento da cegueira do pai, onde estuda, tem acesso e leitura em outras línguas, e retorna em 1922 à Argentina. Foi leitor voraz de enciclopédias. Isso faz ver a obra de Borges, estamos falando aqui dos contos, em duas vertentes: a mística, os arquétipos, os labirintos. De outro, o olhar para o pampa: o duplo, a violência, a solidão árida. O escritor sustentava que, por trás da sua escrita, há a leitura de um livro. Borges lia um livro e contava uma história do que lera. Isso é chave em sua literatura.

Ficções é um livro-chave para a literatura do século XX, que influencia toda a literatura que vem depois dele. Sua estética coloca a possibilidade de algo impensado.  É um relato autêntico que não propõe uma verdade fora do texto. Não é uma reprodução fiel do mundo. Mas o prazer da forma estética. Esses relatos oferecem ao leitor um prazer com a forma que assume o relato. O livro tem duas partes. A primeira, "O jardim dos caminhos que se bifurcam", contendo um prólogo, apresenta textos que foram, muitos deles, já editados em jornais e revistas. A segunda, também contendo um prólogo, "Artifícios", insiste na ideia de colocar em evidência o caráter experimental da estética do texto:

O jardim dos caminhos que se bifurcam: uma das mais importantes narrativas do autor no que se refere a falar de uma de suas metáforas preferidas: o labirinto. O protagonista do conto está sendo perseguido e foge para o lugar onde viveu seu descendente, um rei que disse que se ausentaria do mundo para construir um labirinto e escrever um livro. Contudo, o que o leitor não perde por esperar, é a relação dessa história com a do próprio protagonista.

A biblioteca de Babel: o autor fala do mundo como se este fosse uma biblioteca, tendo um dos mais impressionantes começos literários da história da literatura: “O universo (que outros chamam a  Biblioteca) constitui-se de um número indefinido, e  infinito, de galerias hexagonais, com vastos postos de ventilação no centro, cercados por varandas baixíssimas".

Pierre Menard, autor do Quixote, a falsa resenha da obras de um escritor de ficção francês recentemente falecido, que se envolveu na tarefa complexa e fútil de reescrever Dom Quixote, de Cervantes. Não se trata de copiar o romance, mas de repetir o livro com o intuito de fazê-lo coincidir, palavra por palavra e linha por linha com o original. Trata-se da total aniquilação da personalidade. Se Menard tivesse conseguido reescrever o Dom Quixote, teria sacrificado sua individualidade artística à tarefa, ao mesmo tempo que teria roubado Cervantes de seu status de autor único do grande clássico; o sucesso de Menard equivaleria então à destruição da criação original, tornando a criação um conceito arbitrário, podendo, no futuro, qualquer obra ser escrita por qualquer autor.

Tlön, Uqbar, Orbis Tertius é uma paródia do idealismo filosófico do bispo Berkeley, na qual os membros de uma sociedade secreta dirigida por um milionário chamado Ezra Buckley inventam um planeta imaginário chamado Tlön, cujos habitantes carecem de qualquer senso nato da existência de uma realidade física externa a suas consciências. Numa série de brilhantes manobras cômicas, Borges esboça as consequências desse idealismo congênito para as línguas, as ciências, a matemática, a literatura e as religiões de Tlön. Nesse conto se reconhece várias estratégicas narrativas, uma delas, apagar os limites entre o verdadeiro e o imaginário. O leitor fica confuso se o que lê é invenção ou realidade. É a busca de um livro inexistente. Nesse livro, há um verbete que fala de Ukbar. Postula uma ideia de que o livro é um mundo e o mundo é o livro. O  mundo não é uma condição de possibilidades de um livro, mas o livro pode ser uma condição de possibilidade do mundo.

As ruínas circulares, o protagonista é um homem cinza que chega a um templo circular dedicado ao deus do fogo. O homem pede à divindade o poder de sonhar um filho e inseri-lo no mundo real. Seu desejo é concedido e ele sonhará um filho que todos tomarão como real, exceto o deus do fogo e o próprio sonhador, que saberão que sua criatura é, na verdade, um fantasma imune ao fogo. O homem cinza sente uma espécie de êxtase, uma vez que o propósito de sua vida parece ter se realizado. Pouco depois, porém, um incêndio destrói o templo, e o homem cinza descobre que não é afetado pelas chamas. Percebe, então, que ele, como seu filho é um fantasma: outra pessoa o está sonhando.
A loteria da Babilônia toma a ideia banal de que a vida é uma loteria e inventa uma situação em que é impossível dizer se as vidas dos babilônios são governadas pelo acaso ou pelos desígnios de uma companhia secreta.
Em A morte e a bússola, o detetive Erik Lönrot está investigando o homicídio de um judeu estudioso de Cabala. Um estranho conflito o impele a procurar o assassino por um processo de pura razão. Porém, Erik está, na verdade, sendo manipulado por seu arqui-inimigo, um criminoso judeu chamado Red Scharlach, que planeja secretamente atrair o detetive para a morte, aprisionando-o num labirinto de pistas enganosas.

O sul e O fim tratam do duplo, quando é preciso fazer uma escolha que contempla um deles. Em O Sul, o protagonista é Juan Dahlmann, um residente de Buenos Aires de origem mista germano-protestante e argentino-católica, que se sente profundamente argentino por ser neto de um herói da guerra da Independência. Embora as propriedades da família tenham se perdido há muito tempo e ele tenha um emprego público modesto na cidade, conseguiu salvar a sede de uma estância nos pampas ao sul de Buenos Aires. Na segunda parte da história, o encontramos tomando um trem para ir visitar a mansão, mas o trem para inesperadamente no meio do campo, e enquanto espera num armazém, recebe provocações de um grupo de peões. Sem saber como reagir, subitamente resolve enfrentar o desafio de um compadrito (equivalente ao nosso gaúcho a pé, banido do pampa) depois que um velho gaucho lhe joga uma adaga.

O fim descreve o final de Martín Fierro, relatando o duelo final entre o protagonista e El Moreno, o irmão de um gaucho negro que Fierro havia matado numa briga de bar na primeira parte do famoso poema. Dessa vez, porém, é Fierro que é morto, mas a morte do protagonista não oferece, no fim, uma resolução clara da ação: quando mata Fierro, o negro assume o destino de sua vítima e as identidades aparentemente contrárias de assassino e assassinado se dissolvem, abrindo a história para uma progressão potencialmente infinita. A ação é observada por um terceiro personagem, testemunha totalmente passiva, por causa de um derrame.

Tradução de Carlos Nejar
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Jorge Luís Borges. Ficções. Porto Alegre, Editora Globo, 1969, 158 pp.

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