domingo, 16 de outubro de 2011

Meu lado professor

Fui professor durante 15 anos, trabalhando português, literatura e teatro. Larguei a profissão por um tempo, mas depois fiz novo concurso e lecionei literatura brasileira por mais três anos. Exerci a profissão com a de bancário sem problemas. Talvez por isso tenha saído do banco sem odiar a instituição. O serviço bancário era um serviço desgraçado, pois o que se produzia não era serviço criativo. Tinha a vantagem de ser um serviço coletivo, é verdade, mas o que se fazia me parecia ser produto de ninguém, um serviço sem cara. Depois que larguei o Estado de vez, tratei de exercer no banco a função didática, como educador da Oficina de Comunicação Administrativa, onde se tratava de simplificar o texto ao mínimo necessário, visando agilizar o fluxo de trabalho. Também era educador do BB Educar, dando cursos de 40 horas para formar alfabetizadores de jovens e adultos por esse Brasil afora. Agora aposentado, ainda permaneço ativo no quadro da FBB. Também atuei como alfabetizador em dois núcleos de alfabetização em Porto Alegre.
Como se pode ver, a educação está no meu sangue. Foi a profissão que escolhi como minha meta profissional. Ainda bem que consegui exercê-la paralelamente ao serviço bancário. O trabalho com literatura foi o que mais me cativou. Trabalhar com alunos de periferia era um desafio a cumprir, o que mais gostava de fazer. Você pode imaginar que alunos do segundo grau chegassem até ali sem terem lido um só livro de ficção? Eram muitos assim. Havia os que liam literatura espírita e Paulo Coelho. Era um começo. Busquei entrar em contato com esse material, lendo alguns livros, inclusive Paulo Coelho. Não se podia desvalorizar esse tipo de literatura, pois ela reforçava o gosto pela leitura. O que seu tinha que fazer era diversificar, trazendo textos com maior profundidade criativa, próximos a essa literatura consumida por eles. Era mais importante trabalhar o texto de um autor e a partir daí buscar as características de estilo que marcavam determinado período literário. Lecionar à noite era trabalhar com jovens e adultos na mesma sala de aula. Bater com pessoas que não compreendiam o que liam, já que não desenvolveram a capacidade de abstração em séries anteriores, justamente porque não liam.
O que eu costumava fazer: pegar o capítulo de um livro e digitá-lo no computar com uma letra maior, para que tivessem o conforto da leitura. Depois, ligar os acontecimentos dentro do contexto histórico em que a história era contada. Depois, a verossimilhança. Assim, a função social da literatura se fazia presente. Esta era minha linha de trabalho. Para levar esses polígrafos digitados em fonte maior, eu cometia um ato ilícito, os imprimia numa impressora do banco, usando o lado em branco de papéis já impressos. Aliás, agradeço aos colegas bancários que muitas vezes encontravam na impressora os impressos e não me entregavam à chefia. A chefia era camarada nesse ponto, também. Eu cometia uma infração que tinha um objetivo nobre. Estava buscando alimentar a cultura de gente trabalhadora que não teria acesso a material digno, se não fosse dessa forma.
Eu não era um professor bonzinho, entretanto. Tinha a “crueldade” de obrigar os alunos a lerem, no mínimo, um livro por ano. Para isso tinha minha biblioteca particular com romances e poesias da coleção LPM, que levava para a sala de aula e os deixava folheá-los e se interessar por um que pudessem ler. A tarefa deles não era fácil, eu fazia uma entrevista depois da leitura do livro. Alguns tentavam me enganar, pulando páginas, outros diziam que não conseguiam lembrar da história. Resultado, a nota não era dada até que lessem o livro todo. Claro que alguns não liam o livro todo, era necessário que eu me deixasse enganar. Mas a tentativa havia sido feita. Páginas, pelo menos, foram lidas. Eu puxava o couro dos alunos, mas nenhum deles era reprovado, pois todos buscavam um esforço de vencer dificuldades. Adquiriam a consciência de que havia uma defasagem em sua educação até o momento e que o esforço para alguma compensação, passava a fazer parte deles.
Um dia desses, no ônibus, uma jovem se aproximou e perguntou se eu era o professor Paulo. Ela havia sido minha aluna de teatro na oitava série da Escola Dom Diogo de Souza. Agradeceu-me pelas aulas de teatro e me disse que havia encontrado sua profissão dentro da área: havia feito a faculdade de Artes Cênicas e estava trabalhando numa peça infantil. No restaurante Marcos, uma noite, um garçom me perguntou se eu era o professor de literatura da Lomba do Pinheiro. Havia sido meu aluno (daqueles que me “enganavam” na leitura). Outro dia, uma cobradora do ônibus Santana me disse que eu havia sido professor dela, também. Todos eles me demonstraram afeto na abordagem, sinal de que meu lado “terrorista” não lhes trouxe grandes males. Ainda bem.

Um comentário:

  1. Sabes, também foste, de certa forma, meu professor.O respeito e a gratidão por tantas lições que me deste em nossa juventude , sobre a vida, sobre a importância da rebeldia e da diferença, do questionamento e da ironia, da arte e da amizade,sempre foram a essência maior do meu sentimento por ti. E elas nunca serão esquecidas, até porque hoje se entranharam naquilo que eu sou.

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