domingo, 26 de agosto de 2012

As cartas de amor de Edith Piaf

As cartas de amor de Edith Piaf é um título enganoso, pois aborda apenas uma série de cartas da famosa cantora francesa a um de seus vários amantes, que até então, estivera obscurecido na biografia da artista, Louis Gérardin, o Totó, o belo e elegante herói do ciclismo francês. O motivo dessa correspondência ter sido mantida em sigilo, deveu-se, quem sabe, ao fato de Gérardin ter sido um homem casado que não conseguiu abandonar a esposa. Essas cartas surgiram em 2009, quando foram leiloadas em Paris. Parece que Gérardin havia superado o posto de grande amor de Piaf de Marcel Cerdan. Trata-se de uma correspondência composta de mais de cinquenta cartas manuscritas, escritas no período de novembro de 1951 a setembro de 1952, tempo de duração do romance dos dois. Quando se conheceram, Edith recém-recuperara-se da perda de seu grande amor, o pugilista Marcel Cerdan, morto em desastre de avião em 1949. Edith Piaf amava cada homem com quem se apaixonava, como se fosse o único e o último. De coração impetuoso, teve vários relacionamentos amorosos que duravam, em média, um ano, um ano e meio. Oficialmente foram 16 maridos.
As cartas de amor de Edith Piaf< estão organizadas em três partes: cartas e telegramas datados, cartas e telegramas não-datados e um texto pequeno de apresentação da cantora à imprensa norte-americana, quando de uma de suas apresentações naquele país. Sem valor literário, com vários erros ortográficos amenizados pela tradução para o português, a correspondência nos mostra uma mulher que valorizava os dotes físicos de seu amante, ao mesmo tempo que reclamava dele uma atenção mais próxima. A impressão que fica é de uma Piaf sufocante, chegava a escrever mais de uma carta por dia. Sonhava montar uma casa com Gérardin, mesmo ele não se desfazendo do casamento com a mulher legítima. Cantora dramática, era também dramática em sua vida pessoal. Ela diz em uma de suas cartas, "que gostaria de ser esmagada pelo teu corpo", noutras cobra-lhe: "Querido, diga-me se tem vontade de me ver (...) às vezes você me telefonava (assim que me deixava), que me amava (...) é que em certos momentos não sinto você em meu coração". De início, uma mulher enlouquecida de amor, que suportaria tudo pelo amante. Já mais para o final, uma certa resignação de que o está perdendo, até que chega, em uma das cartas, a lhe cobrar um dinheiro emprestado.
As cartas de amor de Edith Piaf só vale a leitura, se você for muito fâ da cantora.
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As cartas de amor de Edith Piaf. Barueri, SP, Amarilys, 2012, 156 pp. R$ 39,00

domingo, 19 de agosto de 2012

A pista de gelo

Um povoado anônimo de uma cidade espanhola; um chileno com pretensões de escritor que havia exercido todo tipo de trabalhos eventuais; um mexicano também poeta e andarilho que sobrevive como vigilante noturno em um camping; um empreendedor catalão metido a político, capaz de tudo para chamar a atenção de uma bela patinadora. Deles se obtém três versões para um crime, que se vão entrelaçando por toda a novela em torno de uma pista de gelo construída ilegalmente em uma casa abandonada.
O chileno da história também se havia apaixonado pela patinadora. Um dia resolveu segui-la, até que ela entrou num bar. O catalão, que havia ido ao encontro dela, encontra-se com o chileno e saúda-o com uma mescla de ódio e desconfiança. Sente-se mal, quando pressente que entre a patinadora e o chileno pode existir mais que amizade. O chileno havia sido casado com a empregada desse catalão e destroçara sua vida pela desilusão e infelicidade. O catalão pensa que o sul-americano poderia fazer o mesmo com a patinadora, a quem amava muito. O outro elemento, o vigilante, gostava de entrar na casa abandonada para observar furtivamente a bela patinadora a fazer seus exercícios ao som da música clássica.
Às dez horas da manhã de um certo dia, cada um deles se dirige à pista de gelo. Lá, cada um vê de seu ângulo e individualmente, que no centro da pista há um vulto encolhido que não se pode ver direito de quem se trata. O sangue, originado de diversas partes do corpo, havia se espalhado em diversas direções, formando desenhos e figuras geométricas. O corpo pode ser da bela patinadora. Para investigar isso, caro leitor, você precisa ler o livro, para saber. Trata-se de uma história interessante, com muito suspense.
Roberto Bolaño constrói uma história com requinte policialesco, com amores destruídos e ilusões perdidas. Com seu estilo mordaz e seu humor feroz, prende o leitor desde a primeira página. Nascido no Chile em 1953, morto aos 50 anos, surgiu na década de 1990 e logo se tornou um dos mais importantes escritores sul-americano dos últimos tempos. O escritor estava fora do Chile, quando Pinochet tomara o poder. Tentou voltar para lutar contra o ditador, mas foi preso e teve de se exilar na Espanha. Seu romance Os detetives selvagens é considerado sua obra-prima.
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Roberto Bolaño. A pista de gelo. SP, Cia. Das Letras, 2007, 200 pp. R$ 44,00

domingo, 12 de agosto de 2012

O último leitor

O argentino Ricardo Piglia (1940) nos mostra em seu excelente O último leitor, que a obra literária começa e termina nele, no leitor. É aquele que, mesmo lendo mal, mal interpretando, faz o sentido da literatura, é sua tábua de salvação. Um único leitor, o último leitor, chega a sustentar por um momento todo o peso da literatura sobre os ombros.
O primeiro ensaio, “O que é um leitor?”, nos fala de Jorge Luís Borges, um leitor voraz, obstinado por bibliotecas, que perdeu a vista lendo. Borges seria a primeira imagem do último leitor. Ele mesmo disse que “eu sou agora um leitor de páginas que meus olhos já não veem”. Borges foi o leitor perdido em uma biblioteca, que vai de um livro a outro, que lê uma série de livros e não um livro isoladamente. Um leitor disperso na fluidez e investigação de todos os volumes que tem a sua disposição. Depois de cego, Borges passou a escrever, ditando seus livros para a secretária. Aliás, as secretárias tiveram suma importância na vida de muitos escritores. O leitor não é somente o que lê um livro. É o que se perde numa rede de signos. Que lê e relê o mundo de acordo com seu interesse e sua necessidade. A ficção não depende de quem escreve somente, mas de quem lê. A ficção depende do intérprete.
O segundo ensaio, “Um relato sobre Kafka”, discorre sobre a correspondência que Kafka manteve com Felice Bauer, sua noiva, com quem quase se casou por duas vezes, como um grande acontecimento da literatura contemporânea. Nas cartas, escritas entre 1912 a 1917, Kafka narrava à noiva seu processo de escritura e toda sua angústia envolvendo esse processo. Contava, também, de sua vida durante a Primeira Grande Guerra. O interessante é que Kafka manteve sua relação amorosa com Felice através das cartas. Quase nunca se viam. Assim, Felice passava a ser a leitora de Kafka. O leitor mantinha, através da leitora obediente, um mecanismo de controle e sedução.
O terceiro ensaio, “Leitores imaginários”, apresenta-nos o maior representante de leitor da era moderna, o detetive privado das histórias policiais, Auguste Dupin, criado por Edgar Allan Poe, aparecendo em três livros do autor: O assassinato da Rua Morgue, O mistério de Marie Rogêt e A carta roubada. A primeira cena de O assassinato da Rua Morgue se passa justamente numa livraria, onde o narrador conhece ocasionalmente o detetive Dupin, quando os dois estão ali em busca de um mesmo livro, raro e magnífico. Não sabemos qual é o livro, mas o que ele representa: aproximar os dois personagens. Desse encontro, surge a história policial.
O homem da era moderna relaciona-se com o mundo, através de um tipo específico de saber. A leitura funciona como um modelo geral de construção de um sentido para o leitor. Por exemplo, quando você era estudante universitário, qual era sua tendência política dentro da faculdade, que tipos de leitura você tinha acesso e que relação elas poderiam ter com sua atuação política? A indecisão de um intelectual pode ser sempre a incerteza da interpretação, das múltiplas possibilidades de leitura. Pode haver uma tensão entre o ato de ler e a ação política. O quarto ensaio, “Ernesto Guevara, rastros de leitura”, expõe ideias sobre a importância da leitura na formação intelectual do militante Che Guevara. Ricardo Piglia nos fala, por exemplo, de uma cena envolvendo Che Guevara ferido na luta em Cuba, pensando que iria morrer ali. Che recordou-se de um conto que havia lido, de Jack London, em que o protagonista, apoiado sobre uma árvore se dispõe a por fim a sua vida de maneira digna, ao saber-se condenado à morte. A literatura teve naquele momento, para Guevara, um sentido de reflexão existencial.
No quinto ensaio, “A lanterna mágica de Ana Karenina”, o ensaísta nos fala da relação da leitura com a formação do sentido, com a afetividade, com a tradição e com o desenvolvimento do romance de Tolstoi, Ana Karenina. É a época em que as mulheres são as grandes consumidoras da literatura. A partir da geração romântica, as mulheres passam a personificar a figura do leitor moderno. Os romances que se originaram dos folhetins, eram escritos em capítulos de jornal justamente para as mulheres. Ana Karenina lê seu romance num trem de Moscou a São Petersburgo. Nesse trem está o homem que ela vem a conhecer ali e que se tornará seu amante, levando-a à desgraça e ao suicídio. Ao ler seu romance, Ana Karenina identificava-se com a vida das personagens, tendo a ilusão de realidade que faltava a sua vida monótona com o marido. O protótipo da mulher como protagonista na literatura, era o de adúltera.
O último ensaio versa sobre “Como está construído o Ulysses”, uma das grandes obras-primas do romance moderno, que pouquíssimas pessoas leram, pelo alto grau de complexidade da obra. Eu tentei a tradução de Antonio Houaiss e parei na página 548, de 850, por ter perdido o fio da meada. Agora comprei a tradução de Caetano Galindo, pela Penguin Companhia, para nova tentativa. Parece ser mais acessível. Neste ensaio, Piglia nos diz que não existe o texto fechado e perfeito. O verdadeiro leitor lê com a certeza de que o livro não estará suficientemente terminado. Qual sua utilidade e seu valor? Joyce escreve a epopeia de Bloom em 24 horas, na cidade Londres, baseada na epopeia homérica de Ulisses. A obra literária tem sempre uma correlação com outra já existente, que se renova ou se transforma, no caso de Ulysses.
Aconselharia ao leitor dessa crônica que se aventurasse a um voo mais alto, buscando ler a O último leitor. Pode surgir uma dúvida ou outra, nada que o Google não resolva. É de leitura acessível e instigante.

Ricardo Piglia. O último leitor. SP, Cia. Das Letras, 2006, 192 pp. R$ 44,50

domingo, 5 de agosto de 2012

Grandes esperanças

Lemos comumente textos divulgados em jornais e redes sociais, testemunhando que se aprende com os erros cometidos. No caso de Pip, o personagem central de Grandes Esperanças, de Charles Dickens, as virtudes são os acertos que ele faz durante sua trajetória no romance. Grandes esperanças é uma história de redenção moral. O protagonista é um órfão criado num lar humilde que herda uma grande fortuna e imediatamente rejeita os familiares e os amigos. Quando a fortuna desaparece por completo, é obrigado a assumir sua própria ingratidão. Uma das características interessantes de Pip, esse órfão, é que ele é sincero ao confessar seus defeitos, e isso acaba criando nele uma empatia que pode agradar ao leitor. Pip, apesar de ter vergonha de seus pares pobres, é capaz de efetuar boas ações durante a narrativa. É franco com seus sentimentos. Sua franqueza e suas boas ações serão a prova de sua redenção. Durante sua trajetória de altos e baixos, aprende que no encalço do desejo vem sempre a culpa, naquilo que gostaria de ser há aquilo que não pode deixar de ser. O tratamento rígido que recebe da irmã que o criara o faz ver que nada é percebido com tanta intensidade e sentido com tanta intensidade, quanto a injustiça. Isso foi a causa dele ter-se tornado tímido e sensível.
Um dia ele vê-se forçado a ajudar um criminoso em fuga. Sua bondade é reconhecida pelo bandido e isso é parte importantíssima no desenrolar da narrativa. Depois, ele é convidado a frequentar a residência de uma senhora muito rica para brincar com Estella, suposta filha. Ele se apaixona e a senhora lhe propõe mudar de vida, educar-se e ser alguém na sociedade para merecer a jovem. Então Pip passa a ter vergonha do lar e de Joe, seu padastro, um homem tosco, mas profundamente amoroso com Pip. É terrível ter vergonha do próprio lar,talvez seja a mais negra ingratidão. O lar nunca fora o lugar muito agradável para ele, devido ao temperamento de sua irmã. Antes, ele acreditava que o seu lar era o modelo correto de viver e conviver. Que a ferraria de Joe era o caminho da maturidade e independência. Um ano depois, entretanto, convivendo com Estella, tudo aquilo passa a ser-lhe grosseiro e vulgar. Passa a pensar ser vergonhoso se um de seus novos amigos um dia pudesse visitar sua casa humilde. A partir do momento em que Pip muda-se para Londres, muitas coisas acontecem. Seu espírito contraditório acaba levando-o à ruína, mas lhe traz a maturidade necessária para compreender que as grandes esperanças que tem em relação à vida incluem, no caminho, o reconhecimento do amor e da justiça.
O romance foi publicado originalmente em três volumes no ano de 1861, depois de ter sido publicado em folhetim um ano antes. Dickens, assim como Machado de Assis, José de Alencar e inúmeros escritores dessa época, publicavam seus romances em capítulos nos jornais. Por causa disso, sua técnica narrativa é muito bem amarrada. O final de cada capítulo leva o leitor a querer continuar a leitura do capítulo seguinte. Muito bem escrito, apresenta uma linguagem poética cativante.
Charles Dickens (1812-1870)nasceu na Inglaterra. Sua vida transcorre durante o período vitoriano, com a ascensão da Revolução Industrial, que trouxe progresso à nobreza e miséria à classe trabalhadora que surgia então. Sua obra transparece a crítica social a esse estilo de vida, que ele considerava injusto. Sua obra apresenta, assim, traços realistas. Seus romances apresentam, quase sempre, órfãos como heróis. Não raro, certo tom pessimista no futuro de seus personagens. É dos grandes da literatura universal.
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Charles Dickens. Grandes esperanças. SP, Penguin Companhia, 2012, 704 pp. R$ 37,00