sábado, 15 de junho de 2013

Livro das horas

Livro das horas é a publicação mais recente de Nélida Piñon (1937). É um livro de memórias, carregadas de imagens poéticas. Prosa deliciosa que nos faz parar frequentemente para refletir sobre as colocações que a autora brasileira faz sobre o fato de existir.

Nélida Piñon é escritora desde o berço. Ao abrir os olhos, jurou ter fé nas palavras, com elas contar uma história. Este ofício lhe compromete com a fala poética, com o discurso do mistério, com o coração da língua. Mas, na condição de aprendiz, rastreia o transcurso literário dos antecessores, a fim de saber onde eles estiveram e ela não está. A quem eles amaram, ela não amou.
Não tem filhos, mas tem a nós, leitores capazes de defender a civilização contra o avanço da barbárie. A nós, nomeia sucessores de uma linhagem irrenunciável. E, embora duvide às vezes se vale defender alguns princípios hoje contestados, persiste em inscrever certas normas no código dos direitos humanos. Não nos conhece e nem sabe onde vivemos, mas pensa um dia convidar-nos a sermos parceiros, sócios, aliados das suas aventuras narrativas. A nos conhecer pessoalmente, trazendo debaixo do braço algum romance de Machado de Assis. E que vejamos como é a aparência de quem se habituou a registrar os enredos que também vivemos junto com nossas famílias. Instalados em sua sala da Lagoa, ela nos ofereceria um guaraná Antarctica, um cafezinho, e biscoitos de polvilho. Juntos, mergulharíamos nas águas barrentas das palavras, no redemoinho vertiginoso das emoções, nas trevas perturbadoras dos sentimentos ainda sem nome e definição precisa, sem que atropelemos a palavra do outro para impor a nossa. Para exercitarmo-nos a ouvir o que o outro tem a dizer.

Nélida Piñon nos conta que, a cada dia, aprende a perder as pequenas utopias e os ideais indomáveis. Não lamenta viver sem eles. Sente-se mais leve sem o fardo que representam. É impossível servir aos deuses e a ela mesma. Além do mais, perder bens que julgávamos eternos significa estarmos aptos a adquirir, no futuro, haveres que só a fantasia enxerga. É como destilar a solidão que é vida também. Enquanto escreve, ela se resigna em dissolver as ideias que nunca foram suas. Por que padecer pelo que não sabe contar? Ou desesperar-se pela narrativa que viceja alhures e aguardar que algum adorno estético da historia lhe transfigure de repente? Afinal, ela diz, o fracasso literário é didático, impõe a criação de um outro acervo constituído de experiências, lamúrias, segredos, reavaliações. Uma técnica com a qual a vida ensina a que se reabilite no futuro um livro previamente condenado. Acaso ocorre o mesmo com o amor e a morte, sempre iminentes? Devemos ler esse livro maravilhoso para respondermos.
                                  paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Nélida Piñon. Livro das horas. 2ª Ed., SP, Cia. das Letras, 2012, 208 pp., R$ 39,90

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