domingo, 9 de junho de 2013

Tratado ontológico acerca das bolas do boi

 Otacílio leva muito a sério as comemorações do 20 de Setembro. Sente-se honrado em protagonizar a festa, em manter a tradição. Muitos não vão por falta de dinheiro pras pilchas ou pras cordas, ou, pior, por falta de cavalo. Sem estarem completos, têm vergonha de desfilar; não estando completos, têm vergonha de pedir emprestado o que lhes falta. No afã de conseguir um cavalo, Otacílio pensa em tudo, até em roubar um, se for o caso. Esse é o mote para a estória do gaúcho depois do gaúcho a pé, contada pelo alegretense José Carlos Queiroga em Tratado ontológico acerca das bolas do boi.

Não há nada no mundo igual ao pampa. Otacílio jamais ultrapassou os limites da Serra do Caverá (fica no município de Rosário do Sul,RS). Para ele, a juventude passou mais rápido como enterro de pobre, de à cavalo, correndo ao costado do touro e soltando o laço nas aspas, maneando o animal com as duas mãos, fazendo-o virar cambota na cancha. Hoje, destituído de cavalo, é peão de lavoura. Mora num barraco com a mulher e a filha pequena no interior do município e trabalha numa lavoura de arroz. Na época do trabalho duro, consegue ver a família uma vez só, a cada quinze dias, na entressafra. Otacílio, sem cavalo no mundo, sente um vazio de boi de canga, carregando o mundo nas costas, mas fora do aconchego do mundo que sempre foi o seu e agora lhe tomam:trabalha no arroz feito um pato dentro d’água; em casa, a mulher em mágoa pela carestia de tudo. Otacílio é um homem simples, analfabeto (mas não pras coisas do campo, que isso ele entende muito bem!), tem vida simples, sonhos simples, crenças simples, elementares. Se lhe dizem que o fogo aquele que “nunca acaba” nunca apagou desde 1835, ele acredita, sem qualquer fagulha de dúvida, porque é simples.  
Assim como todo mundo, Otacílio já ouvira falar do Movimento Sepé Tiaraju, e sempre mal. É ajuntamento de bandido, que se acolhera pra roubar a terra dos outros; que vão invadindo, cortando cerca. Um  fazendeiro lhe disse que os que mandam no movimento vão para as vilas e arrebanham só a ralé, os borrachos, os bandidos, e os levam de arrasto com promessa de virarem proprietários, patrões, pras beiras das estradas, esperando a hora de dar o bote. Otacílio, entretanto, se interessa pouco por isso, o que ele quer é conseguir um cavalo para poder desfilar no dia 20 de Setembro.
Tratado ontológico acerca das bolas do boi é um romance em retalhos. O périplo de Otacílio pelo pampa sem cavalo e sem terra é recortado por explicações filosóficas e históricas sobre as transformações que sofreram o campo gaúcho com o surgimento do agrobusiness, contadas de forma divertida, mas com fundamentação científica. O livro de Queiroga faz uma análise do movimento dos sem-terra, por exemplo, sedimentada numa ontologia histórica, para exemplificar o que acontece quando se modifica a ideia de que no pampa, as coisas são e pronto, de que desde que o mundo é mundo, o gaúcho vive no lombo do cavalo, que é de onde tira seu parco sustento, cuidando de gado alheio. O pobre Otacílio luta contra os tempos modernos para manter a tradição, numa batalha perdida, num mundo sem cavalo. Tirar-lhe o bicho é como capá-lo a bordizo, a torquês retorcendo o corte por dentro.
Trata-se de um livro diferente. Com um pouco de paciência o leitor desfrutará de uma leitura inteligente e divertida. A obra encontra-se esgotada. Você a encontrará nos sebos virtuais por um preço médio de R$ 30,00.

                        paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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José Carlos Queiroga. Tratado ontológico acerca das bolas do boi. Passo Fundo, Méritos, 2004, 528 pp

 

 

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