sábado, 22 de junho de 2013

Vozes do deserto

O Califa de Bagdá, traumatizado com a traição da mulher com um escravo, a cada noite deitava-se com uma mulher diferente, que acabava matando, após o coito, como forma de vingança contra as mulheres e também como forma de não vir a se apaixonar novamente. Certa noite, uma das mulheres a ser condenada à morte decide salvar sua vida, contando ao califa uma história que se interrompe no clímax, para que na noite seguinte ele possa chamá-la novamente sob o pretexto de continuar a história. O nome dessa mulher: Scherezade. Esse é o mote para a monumental compilação de histórias árabes denominada Livro das mil e uma noite, com contos de origem síria e egípcia que todos conhecemos.

Nélida Piñon reconta a história de Scherezade de forma surpreendente, em Vozes do deserto, romance que lhe deu o Prêmio Jabuti de 2005. A moça do romance não teme a morte. Não acredita que o poder do mundo representado pelo Califa decrete por meio da morte o extermínio da sua imaginação. Quer ser a única capaz de interromper a sequência das mortes dadas às donzelas do reino. Não suporta ver o triunfo do mal que se estampa no rosto do Califa. Quer opor-se à desdita que atinge os lares de Bagdá e arredores, oferecendo-se ao soberano em sedicioso holocausto.

A dor do Califa, entretanto, não provém de um amor ofendido. Há muito deixara de querer a esposa que o traíra miseravelmente no passado. Nunca a amou de verdade. Por ter a liberdade de se relacionar com várias mulheres, habituara-se ao fulgor do desejo apenas. Ou de exercitar suas fantasias sexuais com a pretensão de atingir a cópula perfeita. A solidão do Califa persistia, a despeito do séquito das virgens que se sucediam em seu leito e que ia sacrificando a cada dia. E nunca tendo com quem dividir suas desventuras, ia guardando em segredo suas desilusões. Diferente dos demais mortais, protegia-se das intempéries enviando os súditos ao cadafalso.
Atento, ele registra como a jovem fomenta as emoções. Tarda em encomendar a morte de Scherezade. Inquieta-o que use as histórias da jovem como pretexto para mantê-la ao seu lado. Admite que a fantasia daquela contadora de histórias lhe azeita o corpo, e suas palavras, às vezes cultas, quase sempre de raiz popular, suspendem as noções que tivera até então de realidade. Para ela, era mister ao Califa vir a amar. Submeter-se à carne abandonada e abandonar por instantes o infortúnio alheio, presente em suas fantasias. Suspender o indomável instinto narrativo para transformar-se afinal em personagem do próprio destino. Nélida Piñon vê essa mulher que atravessou mil e uma noites contando histórias ao Califa, poupando a vida de mil e uma outras mulheres. Interiormente, mostra uma mulher forte e delicada, a mulher de quem a fabulosa criação oriental nos dera apenas o vulto escondido entre as dobras do véu muçulmano. A autora nos revela em sua história a natureza profunda de Scherezade. Desejosa de romper o sexo sem amor, obscenamente mecânico imposto a ela, que era possuída e não amada, com a sede da palavra. É esse desejo que salva a narradora e todas as mulheres pelos quais ela se sacrifica.
Quem tem ouvidos, ouça! Através dessa obra, Nélida Piñon reinventa o fascínio das Mil e Uma Noites. Este é mais um livro excelente e recente, que se encontra esgotado. Mas há em sebos virtuais com o preço médio de 15 reais um exemplar em bom estado
                                                                      paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Nélida Piñon. Vozes do deserto. Rio, Record, 2004. 354 pp

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