domingo, 24 de novembro de 2013

O Grande Mentecapto

Apesar da estrada, que ele já apanhou bastante mais movimentada e atraente, a infância de Geraldo Viramundo transcorreu como a de seus irmãos.Como seus irmãos ele comeu terra, botou lombrigas, arrebentou cupim para ver como era dentro, seguiu as formigas para ver aonde iam, misturou açúcar com sal no armazém, furtou garrafa de guaraná e depois mijou dentro botando no lugar para o pai não descobrir, brincou com fogo e mijou na cama, brincou de pegador, tic-tac carambola, este dentro e este fora, matou passarinho com bodoque, enterrou ovo choco e fez fogo em cima para ver se nascia pinto, foi mordido de marimbondo e ficou de cara inchada, amarrou lata vazia em rabo de gato, fez galinha dançar em cima de lata quente, contou com o ovo no rabo da galinha, enfiou o dedo no rabo dela, teve sarampo, catapora, caxumba e coqueluche, pegou sarna para se coçar, correu de boi bravo, botou cigarro na boca de sapo para ele fumar até rebentar, se
escondeu na cesta de roupa suja para ver a irmã mais velha tomar banho, quis pegar a irmã mais nova e depois teve remorso, perdeu a virgindade numa cabrita,fugiu de casa e apanhou e por isso tornou a fugir e por isso tornou a apanhar, construiu casinhas de barro, caiu da árvore e se machucou, comeu manga com leite e adoeceu, contou as estrelas do céu e ficou com berrugas, pegou carona em caminhão, aprendeu a ler na escola, fez do travesseiro o corpo da professora, teve medo do João Carangola que fugiu da prisão e gostava de menino, assobiou e chupou cana ao mesmo tempo, fumou cigarro de chuchu, fez coleção de favas, foi à missa aos domingos, assistiu fita de Tom Mix, Buck Jones e Carlitos no cineminha da cidade, apanhou bicho-de-pé, pisou em urina de cavalo e ficou com mijação, armou arapuca no mato, jogou futebol com bola de meia, teve dor de dente de noite, foi coroinha na igreja, contou quantas vezes fazia coisa feia para se lembrar na confissão, procurou não mastigar a hóstia para que não saísse sangue, fez flautinha de bambu, ficou preso pela piroca num gargalo de garrafa, molhou o pijama de noite e teve medo de estar doente, ficou com pedra na maminha e perguntou à mãe o que era, se apaixonou pela filha mais velha dos italianos do empório, tirou o cavalinho da chuva, pensou na morte da bezerra, chorou escondido, teve medo, descobriu que o céu era imenso, teve vontade de morrer, ficou acordado de madrugada ouvindo o galo cantar sem saber onde, sentiu dores nos culhões, comeu a negra Adelaide e virou homem.”

Numa tarde de sábado, o sino da igreja tinha acabado de bater, havia silêncio pairando sobre as árvores e as coisas ao redor e ele estava deitado debaixo de uma mangueira no quintal de sua casa. Então se apoiou nos cotovelos e estendeu o olhar meio para longe: centenas de vezes tinha estado ali, naquela mesma posição, era uma paisagem conhecida e tão familiar como o seu próprio modo de viver, que nela se completava. Mas naquele mesmo instante uma buzina de automóvel soou na estrada, um boi mugiu no pasto, uma menininha de vermelho passava correndo lá longe na ponte, um vento leve começou a sacudir a ramagem das árvores. O momento assim surpreendido parecia conter um significado qualquer que lhe escapava, e a que tudo se subordinava, como as notas de uma música. Geraldo Viramundo se sentiu mais só do que quando mergulhava no rio, mas era uma solidão feita de desamparo e saudade da infância - quando, minutos mais tarde, se ergueu e caminhou em direção à casa, percebendo que não era mais menino.

Foi levado por um padre para o seminário. Saiu do seminário e fez longa viagem de Mariana a Ouro Preto, onde conheceu a amada da vida inteira. Em Barbacena, colheu rosas e espinhos, acabando internado em um hospício. Foge de lá e se candidata a prefeito da cidade. Não ganha a eleição, mas passa por mirabolantes aventuras no Esquadrão de Cavalaria em Juiz de Fora, fazendo façanhas militares durante as manobras militares, que o leva a ser expulso do  Esquadrão. Depois, passa um tempo na prisão. Sai da prisão atravessando uma crise espiritual que o leva à desesperança em Congonhas do Campo. Passa por maus bocados em Uberaba, buscando cumprir seu destino, reverenciando a literatura mineira, passando a noite com um fantasma e quase morrendo por uma mulher. Finalmente, em Belo Horizonte, entre retirantes, mulheres, doidos e mendigos, cumpre seu destino.

Fernando Sabino escreveu O Grande Mentecapto seguindo a forma de romance picaresco, subgênero literário que descreve a vida de personagens supostamente  ardilosos e espertos (por serem sonhadores, passam por tolos) , vivendo  as peripécias da vida com o objetivo de alcançar seus ideais. Dom Quixote e Memórias de um Sargento de Milícias são romances  picarescos. No caso do mentecapto de Fernando Sabino, ele é colocado na luta pela vida por vontade dos outros. Essa trajetória, engraçada e trágica, o faz perceber que a alegria e a felicidade que se vive na infância, podem transformar-se em martírio e dor. Sabino começou a escrever a obra em 1946, interrompida em seu início e retomada em1979, quando o autor já estava amadurecido e seus méritos literários reconhecidos  como escritor. Vale a pena ler e reler. A obra encontra-se esgotada. Nos sebos virtuais é possível achar um exemplar em excelente estado de conservação por um preço entre 10 a 20 reais.

                                             paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Fernando Sabino. O Grande Mentecapto. 70ª ed., Rio, Record, 2007, 258

2 comentários:

  1. Em “O Grande Mentecapto”, Fernando Sabino narra um encontro imaginário entre Geraldo Viramundo e o escritor francês Georges Bernanos. O autor que tanto interessou Sabino foi um dos maiores romancistas em língua francesa do século XX e morou no Brasil entre 1938 e 1945. Sua obra tem sido publicada no Brasil pela É Realizações Editora, e agora sua passagem pelo país é narrada ao público local. O estudo de Sébastien Lapaque “Sob o Sol do Exílio: Georges Bernanos no Brasil (1938-1945)” acaba de ser publicado, trazendo à luz a visita de Bernanos a várias cidade do Rio de Janeiro e Minas Gerais, sua estadia no sítio Cruz das Almas, sua revolta contra a mediocridade dos intelectuais e a ascensão do totalitarismo, sua amizade com pensadores brasileiros e a visita que Stefan Zweig lhe fez à véspera de se suicidar.

    Matérias na Folha de S. Paulo a propósito do lançamento do livro: http://goo.gl/O8iFve e http://goo.gl/ymS4lL
    Para ler algumas páginas de “Sob o Sol do Exílio”: http://goo.gl/6hAEOM

    Confira também:
    Diálogos das Carmelitas: http://goo.gl/Yy3ir3
    Joana, Relapsa e Santa: http://goo.gl/CAzTTk
    Um Sonho Ruim: http://goo.gl/Kd091z
    Diário de um Pároco de Aldeia: http://goo.gl/ISErLc
    Sob o Sol de Satã: http://goo.gl/qo18Uu
    Nova História de Mouchette: http://goo.gl/BjXsgm


    ANDRÉ GOMES QUIRINO
    mkt1@erealizacoes.com.br

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  2. Sob o sol de Satã, de Bernanos, já foi comentado neste blog, André, em 06/01/13.

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