domingo, 19 de janeiro de 2014

A fera na Selva

Ele a reencontra, anos depois, em uma reunião de amigos, quando ela questiona sobre uma declaração que ele lhe havia feito naquela vez:  "Você me contou que sempre teve, desde os primeiros tempos, como a coisa mais profunda dentro de você, a sensação de estar sendo poupado para algo raro e estranho, talvez prodigioso e terrível, que mais cedo ou mais tarde acabaria acontecendo.  Isso que você falou já aconteceu?" A partir dessa revelação, os dois passam o resto da vida aguardando com obstinada intensidade que aconteça essa coisa extraordinária, como uma fera emboscada na selva, pronta para saltar a qualquer momento. Enquanto envelhecem, vão tecendo, com sentimentos à flor da pele, um sutilíssimo embate de emoções, no jogo da relação afetiva entre dois seres a quem o amor uniu sem que eles saibam.
A lembrança desse esquecimento  acaba trazendo-o para a luz do dia. A sorte rara de haver outra vez esbarrado no lugar exato o tornou indiferente a tudo mais; sem dúvida dedicaria mais tempo ao seu esquisito lapso de memória, se não fosse levado a dedicar mais ao alívio, para o futuro que o próprio lapso ajudou a conservar. Nunca fizera parte de seus planos que alguém pudesse saber, principalmente pela simples razão de que não estava nele contar a ninguém. Isso teria sido impossível, pois não poderia esperar nada de impossível, pois não poderia esperar nada de um mundo indiferente, a não ser que se divertissem com aquilo. Desde que  o misterioso destino veio abrir em tempo a sua boca, considerou isto uma compensação da qual tiraria o maior proveito. A ideia de que a pessoa certa é que sabia amenizava a aspereza do seu segredo bem mais do que a timidez poderia deixá-lo imaginar. Ele se considerava a pessoa mais desinteressada do mundo, carregando sempre discretamente a sua pesada carga, jamais tocando no assunto, não mostrando aos demais sequer um lampejo dela, ou dos efeitos sobre sua vida, não pedindo a compreensão de ninguém e somente dando, por seu lado, aquela que lhe pediam. Deu-se conta, então, que o que acabou acontecendo é que ele passou a usar uma máscara pintada com o sorriso social, de cujas frestas emanava um olhar de uma expressão que nada tinha a ver com as suas feições. Era o que o mundo estúpido, mesmo depois de tantos anos, jamais descobriu senão em parte. Somente ela chegara a fazê-lo, e, com uma arte indescritível, realizava a façanha de encarar os olhos de frente e ao mesmo tampo - ou talvez fosse apenas alternadamente - intrometer sua própria visão, como por sobre o ombro dele, espiando também através das frestas da máscara.

O que incomoda positivamente o leitor nessa narrativa curta característica da narrativa de Henry James pelo uso de uma linguagem densa e intricada (que a tradução de Fernando Sabino procurou atenuar), é o complexo funcionamento da consciência humana. A fera na selva é a história de algo que não acontece. Ao desenrolar dos encontro dos dois durante, vai-se criando a sensação incômoda de que o que deve ser dito poderá não acontecer. Uma pulsão amorosa reprimida até a perda, pela covardia.

Há duas traduções para o português de A fera na selva. Recentemente a Cosac Naify lançou a obra com a tradução de José Geraldo Couto, com posfácio de Modesto Carone em edição esmerada, característica da Cosac (R$ 45,00). A tradução mais antiga é de Fernando Sabino, que traduziu a obra para a coleção que coordenou para a Editora Rocco sobre grandes novelas da literatura universal. Foi essa edição que eu li.
                                                 paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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henry james. A fera na selva.  Rio, Rocco, 2011, 96 pp, R$ 19,50

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