domingo, 5 de janeiro de 2014

Meridiano de Sangue

Mesmo que Deus exista, nada pode fazer por nós. Em Meridiano de sangue, Cormac McCarthy (1933) parece nos dizer que estamos abandonados e nosso único confronto é com nossa própria existência. A personagem principal, o Kid, órfão de mãe, foi esquecido pelo pai. Largado no mundo, leva um tiro nas costas aos quinze anos de idade. Envolve-se num bando de mercenários, mas logo se vê no meio de um ataque de apaches (por ironia, uma das cenas mais fortes da narrativa). Vai para a prisão e logo é contratado pelo capitão Glanton para ir com seu grupo caçar mais índios e um mexicano. Será ali que reencontrará um sujeito que sempre o acompanhou desde os tempos de infância, o juiz Holdem. Leia a cena do ataque dos apaches ao grupo:

Já se podia ver, por entre a poeira, pintados sobre o couro dos pôneis, asnas e mãos e sois nascentes e pássaros e peixes de todos os feitios como vestígios de trabalho antigo sob o selante de uma tela e agora também se podia ouvir acima do martelar dos cascos desferrados o sopro das quenas, flautas de ossos humanos, e alguns dentro da companhia começaram a olhar para trás em suas montarias e outros a se atropelar em confusão quando de um ponto além daqueles pôneis assomou uma horda fantástica de lanceiros e arqueiros a cavalo portando escudos adornados com pedaços de espelhos quebrados que lançavam mil sóis fragmentados contra os olhos de seus inimigos. Uma legião medonha, às centenas em números, seminus ou vestidos em trajes áticos ou bíblicos ou ataviados como num sonho febril com as peles de animais e ornatos de seda e peças de uniforme ainda marcadas pelo sangue de seus donos originais, capotes de dragoons trucidados, casacos de cavalaria com galões e alamares, um de cartola e outro com um guarda-chuva e mais outro com longas meias brancas de mulher e um véu de noiva manchado de sangue e alguns com cocares de penas de grou ou capacetes de couro cru ostentando chifres de touro ou búfalo e um metido em um fraque ao contrário e de resto nu e outro com a armadura de um conquistador espanhol, o peitoral e as espaldeiras com fundas mossas de antigos golpes de maça ou sabre feitos em outro país por homens cujos ossos eram agora pó e muitos ainda com suas tranças entrelaçadas ao pelo de outras feras a ponto de arrastar no chão e as orelhas e rabos de seus cavalos ornamentados com retalhos de tecidos coloridos brilhantes e um cujo animal tinha a cabeça inteira pintada de escarlate e os rostos de todos os cavaleiros lambuzados de tinta de um jeito espalhafatoso e grotesco como uma companhia de palhaços a cavalos, hilários mortais, todos ululando em uma língua bárbara e caindo sobre eles como uma horda de um inferno ainda mais horrível que o mundo sulfuroso do juízo cristão, guinchando e gritando e amortalhados em fumaça como esses seres vaporosos de regiões além da justa apreensão onde o olho erra e os lábios balbuciam e babam. (...) uma sonora revoada de flechas atravessou a companhia e homens cambalearam e tombaram de suas montarias. Cavalos empinavam e mergulhavam e as hordas mongólicas os envolveram pelos flancos e viraram e investiram à plena carga com suas lanças.= (59/60)

A violência, que parece fazer parte de quase toda a narrativa de McCarthy, transmite um problema moral repleto de ambiguidade, provando que, apesar de todo o caos, nele existe uma ordem que poucos têm a coragem de aceitar.  O autor usa de uma violência em prol de uma causa maior. Cria imagens poéticas da violência. A narrativa borbulha descrições poéticas e ações e situações que alimentam a vontade de ler o livro quase sem parar. O kid passa por um aprendizado da sua própria violência e a dos outros para depois, ao reencontrar o juiz no final romance, chegar à conclusão de que há algo além das carnificinas que testemunhou. As lições do mal de McCarthçy educam seus personagens. A observação detalhada e poética da natureza é como um espelho da alma do protagonista, um solitário arredio a uma sociedade que se moderniza sem nenhum respeito pela tradição que se despede. A solidão é o mote principal da condição humana. A noção pessimista quase mórbida do ser humano, em que um mal lógico é identificado como a origem de uma violência que, se provoca ainda mais desgraça, também pode regenerar o mundo; escolhas que ninguém sabe por que são feitas, para que ele sinta em cada um de seus ossos a solidão que permeia a vida dessas pessoas, a solidão que enfim os faz se aproximar cada vez mais da morte, seja de si mesmos ou do lugar onde moram, prontos a se tornarem lendas, mitos, pó.

O luiz Holden, albino, desprovido de pelos, enorme na altura e na largura, perito em armas brancas e de fogo, culto em várias línguas, um gentleman que encanta as mulheres com suas danças e, ao mesmo tempo, estupra criancinhas, escalpelas índios apaches sem nenhuma hesitação e anota minuciosamente todas as coisas ao seu redor em um livro de couro para despois apagá-las de sua existência, sem deixar nenhum rastro. A conversa definitiva que ele tem ao reencontrar o garoto, quase no final da narrativa, desconcerta:

Os homens nasceram para os jogos. Nada mais. Qualquer criança sabe que brincar é mais nobre que trabalhar. Sabe também que o valor ou mérito de um jogo não é inerente ao jogo em si, mas antes ao valor do que está em risco. Jogos de azar exigem uma aposta para significar alguma coisa. Jogos esportivos envolvem a habilidade e força dos oponentes e a humilhação da derrota e o orgulho da vitória são em si mesmos aposta suficiente pois estão indissociavelmente ligados ao valor dos envolvidos e os definem. Mas seja qual for a prova, se de sorte ou valor, todo jogo aspira à condição de guerra pois nesse caso o que se aposta suprime tudo, jogo, jogadores, tudo. (...) Imaginem dois homens jogando cartas sem outra coisa para apostar além de suas vidas. Quem já não ouviu falar de algo assim. A virada de uma carta. Para esse jogador o universo inteiro avançou laboriosamente em todo o seu fragor para chegar a esse momento que dirá se ele vai morrer na mão daquele homem ou se ele morrerá da sua. Que confirmação mais definitiva o valor de um homem pode ter que essa? Essa intensificação do jogo a sua condição suprema não admite qualquer discussão relativa a ideia de destino. A seleção de um homem em detrimento de outro é uma preferência absoluta e irrevogável. E é um estúpido genuíno aquele capaz de supor decisão assim tão profunda sem um agente ou significação, uma coisa ou outra. Em tais disputas em que está em jogo é a aniquilação do derrotado, as decisões são cristalinas. Esse homem, segurando esse arranjo particular de cartas em sua mão, é por isso removido da existência. Essa é a natureza da guerra cuja aposta é, ao mesmo tempo, o jogo, a autoridade e a significação. Vista dessa forma, a guerra é a forma mais legítima de divinação. Significa pôr à prova a vontade de um indivíduo e a vontade de outro no contexto dessa vontade mais ampla, que, ao ligar a deles é, por conseguinte, forçada a selecionar. A guerra é o jogo supremo, por que é, em última instância, um forçar da unidade da existência. A guerra é Deus. Não faz diferença o que o homem pensa da guerra, a guerra perdura, é a mesma coisa que perguntar o que o homem pensa da guerra. A guerra sempre vai existir. Antes do homem aparecer, a guerra estava a sua espera. A ocupação suprema, a espera, do praticante supremo. Assim foi e assim será. Assim e de mais nenhum outro jeito. (261)
Para o leitor que gosta ou quer conhecer melhor a obra de Cormac McCarthy, recomendo o ensaio esclarecedor de Martim Vasques da Cunha, no Jornal Rascunho: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-visao-do-abandono/

Meridiano de sangue é considerado obra-prima de Cormac McCarthy. Tem tradução de Cássio de Arantes Leite
                                    
                                   paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Cormac McCarthy. Meridiano de sangue. Rio, Objetiva, 2009, 352 pp, R$ 49,90

 

 
 

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