domingo, 12 de janeiro de 2014

Suttree


O narrador de Suttree com uma carta:
"Caro amigo, nas horas poeirentas e intemporais da cidade, agora que as ruas jazem negras e exalam nuvens de vapor na esteira dos camiões-cisterna e agora que os bêbedos e os sem-abrigo desaguaram nas vielas e nos terrenos baldios, abrigados junto aos muros, e os gatos vagueiam nas soturnas cercanias, esguios e de espáduas altaneiras, agora nestas galerias empedradas ou de tijolos enegrecidos de fuligem onde as sombras dos fios eléctricos formam uma harpa espectral nas portas das caves, ninguém caminhará senão tu."

O narrador nos aponta um mundo distante e abandonado em  Knoxville (a terra em que Cormac McCarthy viveu durante o tempo em que seu pai lá trabalhou como advogado),  uma cidade pobre do sul dos Estados Unidos, na década de 1950. Há ruas sujas, com ossos fossilizados ocultos nas suas estrias, pessoas pobres caminhando e sujando os pés em ruelas arenosas onde repousam carros destroçados sobre muradas de tijolos, árvores magras e escuras, lâmpadas partidas à pedrada, casas desalinhadas onde crescem flores sujas, trilhos onde repousam vagões que se perdem nas trevas. Junto ao rio, há pedaços de caixotes apodrecidos, preservativos, cascas de frutas, latas enferrujadas, excrementos, lâmpadas estilhaçadas, formas nauseabundas de fetos tumefatos. Junto a esse cenário, o rio nos mostra pequenas plantações de milho e hortas para consumo próprio de homens e mulheres pobres, alguns bêbados,  vivendo em condições miseráveis. É nesse lugar nojento e até mesmo amedrontador que Cormac McCarthy dá voz aos marginais vivendo segundo cânones e regras que escapam à compreensão da maioria social economicamente estabelecida. O personagem central do romance, Cornelius Suttree, é um homem solitário que vive dentro de uma embarcação que usa para pescar peixes podres que vende na cidade para sobreviver. A narrativa abarca o período entre 1950/1955. Durante o desenrolar da história, ficamos sabendo que Sutree vive nesse mundo degradado como opção de vida. Filho de uma família com certas posses, tinha problemas de relacionamento com o pai, afastando-se de casa. Essa escolha é clara para Sutree, mas não deixa de lhe ser torturante. Ele passa todo o romance em busca de qualquer coisa que não sabe bem o que seja, embora compreenda perfeitamente que não poderá voltar atrás a essa escolha. Por isso, o personagem carrega consigo uma profunda e desoladora solidão. Também carrega consigo uma angústia imensa, uma incapacidade de se entregar aos outros de corpo e alma. Essa atmosfera trágica não deixa, entretanto, de apresentar situações burlescas, um humor escatológico, sim, mas com situações engraçadas que iluminam o âmago tenebroso da narrativa.
Suttree está merecendo uma boa tradução brasileira. Quem sabe a editora Objetiva, quem vem publicando suas obras no Brasil venha a fazer isso brevemente. Se você tiver curiosidade em conhecer essa obra-prima, terá de recorrer à edição portuguesa da Relógio D'Água, com tradução de Paulo Faria. Um exemplar novo leva em torno de 60 dias para chegar a suas mãos, ainda que você não pague imposto sobre livro estrangeiro. Mas valerá a pena. O romance é muito, mas muito bom!

                                 paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Cormac McCarthy. Suttree. Lisboa, Relógio D'Água, 2009, 496 pp, R$ 96,80

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