domingo, 20 de abril de 2014

Senhora



Afastemos discretamente uma dobra do reposteiro que recata a câmara nupcial.

É uma sala em quadro, toda ela de uma alvura deslumbrante, que realçam o azul celeste do tapete de riço recamado de estrelas e a bela cor de ouro das cortinas e do estofo dos móveis.
A um lado, duas estatuetas de bronze dourado representando o amor e a castidade, sustentam uma cúpula oval de forma ligeira, donde se desdobram até o pavimento, bambolins de cassa finíssima.

Por entre a diáfana limpidez dessas nuvens de linho, percebe-se o molde elegante de uma cama de pau-cetim pudicamente envolta em seus véus nupciais, e forrada por uma colcha de chamalote também cor de ouro.
(...)

Correu-se uma cortina, e Aurélia entrou na câmara nupcial.

Seu passo deslizou pela alcatifa de veludo azul marchetado de alcachofras de ouro, como o andar com que as deusas perlustravam no céu a galáxia quando subiam ao olimpo.

A formosa moça trocara seu vestuário de noiva por esse outro que bem se podia chamar trajo de esposa; pois os suaves emblemas da pureza imaculada, de que a virgem se reveste quando caminha para o altar, já se desfolhavam como as pétalas da flor no outono, deixando entrever as castas primícias do santo amor conjugal.

Trazia Aurélia uma túnica de cetim verde, colhida à cintura por um cordão de torçal de ouro, cujas borlas tremiam com seu passo modulado. Pelos golpeados deste simples roupão borbulhavam os frocos de transparente cambraia, que envolviam as formas sedutoras da jovem mulher.

As mangas amplas e esvasadas eram apanhadas, na covinha do braço e sobre a espádua, por um broche onde também prendia a ombreira, mostrando o braço mimoso, cuja tez roseava a camisa de cambraia abotoada no punho por uma pérola.

Os lindos cabelos negros refluíam-lhe pelos ombros presos apenas com o aro de ouro, que cingia-lhe a opulenta madeixa; o pé escondia-se em um pantufo de cetim que às vezes beliscava a orla da anágua, como um travesso beija-flor.

O casto vestuário da moça recatava-lhe as graças do talhe; entretanto quando ela andava, e que seu corpo airoso nadava nas ondas de seda e cambraia, sentia-se mais n'alma do que nos olhos o debuxo da estátua palpitante de emoção. A cada movimento que imprimia-lhe o passo onduloso, acreditava-se que o broche da ombreira partira-se e que os véus zelosos se abatiam de repente aos pés dessa mulher sublime, desvendando uma criação divina, mas de beleza imaterial, e vestida de esplendores celestes.

Aurélia atravessou o aposento, e chegando à porta que ficava fronteira àquela por onde entrara, curvou de leve a cabeça recolhendo-se para escutar; mas não ouviu senão o arfar do seio, que lhe ofegava.

(...)

Seixas ajoelhou aos pés da noiva, tomou-lhe as mãos que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode sublime do coração que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o balbuciar do filho.

A moça com o talhe lângüidamente recostado no espaldar da cadeira, a fronte reclinada, os olhos coalhados em uma ternura maviosa, escutava as falas de seu marido; toda ela se embebia dos eflúvios de amor, de que ele a repassava com a palavra ardente, o olhar rendido, e o gesto apaixonado.

-- É então verdade que me ama?

-- Pois duvida, Aurélia?

-- E amou-me sempre, desde o primeiro dia que nos vimos?

-- Não lho disse já?

-- Então nunca amou a outra?

-- Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios nunca tocaram a face de outra mulher, que não fosse a minha mãe. O meu primeiro beijo de amor, guardei-o para minha esposa, para ti...

Soerguendo-se para alcançar-lhe a face, não viu Seixas a súbita mutação que se havia operado na fisionomia de sua noiva.

Aurélia estava lívida, e a sua beleza, radiante há pouco, se marmorizava.

-- Ou para outra mais rica!... disse ela retraindo-se para fugir ao beijo do marido, e afastando-o com a ponta dos dedos.

A voz da moça tomara o timbre cristalino, eco da rispidez e aspereza do sentimento que lhe sublevava o seio, e que parecia ringir-lhe nos lábios como aço.

-- Aurélia! Que significa isto?

-- Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entretemos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.

-- Vendido! exclamou Seixas ferido dentro d'alma.

-- Vendido sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento.

Aurélia proferiu estas palavras desdobrando um papel, no qual Seixas reconheceu a obrigação por ele passada ao Lemos.

Não se pode exprimir o sarcasmo que salpicava dos lábios da moça; nem a indignação que vazava dessa alma profundamente revolta, no olhar implacável com que ela flagelava o semblante do marido.

Seixas, trespassado pelo cruel insulto, arremessado do êxtase da felicidade a esse abismo de humilhação, a princípio ficara atônito. Depois quando os assomos da irritação vinham sublevando-lhe a alma, recalcou-os esse poderoso sentimento do respeito à mulher, que raro abandona o homem de fina educação.

Penetrado da impossibilidade de retribuir o ultraje à senhora a quem havia amado, escutava imóvel, cogitando no que lhe cumpria fazer; se matá-la a ela, matar-se a si, ou matar a ambos.

Aurélia como se lhe adivinhasse o pensamento, esteve por algum tempo afrontando-o com inexorável desprezo.

-- Agora, meu marido, se quer saber a razão por que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la; e peço que me não interrompa. Deixe-me vazar o que tenho dentro desta alma, e que há um ano a está amargurando e consumindo.

A moça apontou a Seixas uma cadeira próxima.

-- Sente-se, meu marido.

Com que tom acerbo e excruciante lançou a moça esta frase meu marido, que nos seus lábios ríspidos acerava-se como um dardo ervado de cáustica ironia!

Seixas sentou-se.

Dominava-o a estranha fascinação dessa mulher, e ainda mais a situação incrível a que fora arrastado.

Senhora é a história de uma jovem rica, linda e formosa que compra um marido. Nada demais,  considerando-se os costumes da sociedade brasileira da segunda metade do século XIX. Era praxe a famílias ricas o casamento por interesse e o oferecimento de  um dote a um homem que se dispusesse a casar. Era assim que muitos homens bastardos ascendiam socialmente. Entretanto, o que José de Alencar nos oferece no romance é uma dura crítica social a esse tipo de transação, em que os bens materiais subjugam o sentimento amoroso. Aurélia Camargo é a nova estrela que raiou no céu fluminense; a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade. Acontece que Aurélia não fora sempre assim. Era moça pobre e órfã que ajudava a mãe nas costuras, o único sustento das duas. Tinha 16 anos quando conheceu Seixas. Apaixonaram-se. Porém, movido por dificuldades financeiras, Seixas a abandona para casar-se com outra, devido a um dote de 40 contos de réis. Inesperadamente, para sorte de Aurélia, morre-lhe o avô rico que lhe deixa enorme fortuna. Aurélia torna-se rica e arma o plano para ter Seixas de volta por um dote de 100 contos de réis, como forma de vingança.

Senhora só não é um romance extraordinário, porque José de Alencar não leva a cabo a ideia primeira de desmontar a hipocrisia da sociedade imperial de sua época. Seixas acaba se mostrando um moço fino de boa índole, que fez o que fez forçado por pressões econômicas. Ele trava uma árdua batalha para resgatar sua independência. Mas é um romance ótimo de se ler ou reler. José de Alencar era exímio construtor de metáforas e descrições deslumbrantes de ambientes e pessoas. O romance prende a tenção do leitor desde o início.

Caso queira entrar em contato com a obra, busque a edição da Penguin/Companhia das Letras, que apresenta um texto bem diagramado, de leitura confortável, além de apresentar uma introdução esclarecedora do professor Antônio Dimas. Vale a pena!

                     paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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José de Alencar. Senhora. SP, Penguin/Cia. Das Letras, 2013, 336 pp, R$ 29,00

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