domingo, 26 de outubro de 2014

O sorriso do lagarto

A Ilha de Itaparica continua presente em O sorriso do lagarto de João Ubaldo Ribeiro. Lá estão políticos corruptos, cientistas inescrupulosos, fazendeiros desonestos, um assassino profissional, um médico humanitário e um solteirão um tanto reservado que abdicou de sua vida de biólogo, para virar pescador e viver de uma peixaria na cidade. João Pedroso, esse pescador, é bastante chegado numa cachaça e em conversar com pescadores e moradores nos bares e calçadas da cidade.

Ana Clara, mulher bela, casada com Ângelo Marcos, o político corrupto, resolve agitar sua vida monótona de dondoca, arranjando um amante. Esse amante é João Pedroso. O que, a princípio, parece ser apenas um caso de amor passageiro, acaba tornando-se num caso complicado no decorrer da narrativa, com um final trágico. Aliado a isso, surge uma ameaça ao meio-ambiente com o surgimento de criaturas esquisitas, quase desumanas, questionando a evolução humana. Uma negra que incorpora uma cigana relatara ao Pajé, um pai de santo do local, que ao chegar em uma casa para pedir um pouco de água, encontrou três seres nunca vistos, três seres como crianças, mas que não eram gente. Indagando sobre essas crianças, a mulher informou-lhe que um era filho dela e os outros dois de uma vizinha. Por serem diferentes, escondiam as crianças dos olhares externos. Aí começa uma reviravolta, muito bem amarrada pelo autor, envolvendo a ética na ciência, através do controle pelos que detêm o poder.

O sorriso do lagarto está aquém dos excelentes Sargento Getúlio, Viva o povo brasileiro, A casa dos budas ditosos e o Albatroz azul, todos já resenhados neste blog. Algumas situações, como o surgimentos desses seres fantásticos, soando estranho ao corpo da narrativa. Fora isso, não decepciona, pois João Ubaldo Ribeiro é bamba ao contar uma história.

          paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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João Ubaldo Ribeiro. O sorriso do lagarto. 3ª ed, Rio, Objetiva, 2009, 344 pp, 63,90

domingo, 19 de outubro de 2014

A desumanização

A Desumanização, de Valter Hugo Mãe se passa na Islândia. Desumanização no caso aqui, refere-se a espiritualidade. A pequena Halla nos conta que é irmã gêmea de Sigridur,  uma morta. Sendo igual a ela, não discernia se  estava morta e a outra viva. Sabia que aceitar a morte da irmã era uma forma de egoísmo. Mas isso ela só elaborou mais tarde, ao longo da vida dura que levou ao lado de uma mãe nervosa e culpada pela morte da filha. E de um pai afetivo, mas que se distanciava aos poucos. Tinha como amigo Einar, um ser débil, que se uniu a ela depois que a engravidou e cujo filho perdeu. Para Halla, a vigília dos dias não permitia que a raiva acabasse. Não saberia aceitar a morte da irmã. Sentia muita revolta. Sempre à espera de um sinal. Ficava esperando que um dia pudesse conversar com a irmã desaparecida, igual às verdadeiras histórias de fantasmas, pois as duas eram parte de um mesmo todo. A irmã certamente iria lhe falar com palavras bem concretas acerca da tristeza ou da felicidade que deviam nutrir.

Quando enterraram sua irmã gêmea, disseram a ela que a haviam plantado, mas nasceria outra vez, igual a uma semente. E adormeceu achando que sua irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas. Achou que a morte seria igual à imaginação, entre o encantado e o terrível, cheia de brilhos e susto, feita de ser e caos.  A morte das crianças era assim, disse-lhe a mãe. Quando Halla visitava o lugar onde Sigridur fora enterrada, sabia que ela e sua irmã comungavam das emoções. Diferiam em poucas coisas. Tinham, até, honra, uma cumplicidade para afinar as condutas e as expectativas. Caíam-lhe os dentes de leite ao mesmo tempo. Halla já muito explicara acerca da impressão da terra sobre ela, a água, o ruído das ovelhas pastando. Mas não se decidia acerca do que seria sua irmã sentindo. Onde estava, se estaria apenas ali a uns palmos do chão, se estaria longe a se sentir bem ou se andaria aflita, matando e morrendo cada vez mais e carregada de ódio. Halla sentia nada. Sobretudo medo e nada. Halla era gêmea da morte. Crianças espelho. Tudo em seu redor se dividiu por metade com a morte.

Valter Hugo Mãe disse em uma entrevista que não quer tratar o leitor como estúpido. Por isso mesmo, A Desumanização é um romance que se utiliza de todas as possibilidade do discurso. Sobre por que da história se passar na Islândia, disse que o lugar é fundamental para conferir a imagem, aquilo que vemos através das palavras. Buscou um espaço que fosse fisicamente uma proposta visual desafiante para as palavras. Sua motivação interna tinha que ver com a procura da questão da solidão. Uma reflexão extremada da solidão. Um lugar perdido no norte do planeta, frio, isolado, pouquíssima gente, isso suscita uma espiritualização da existência, a ponto de fazer com que o criador ou a natureza sejam efetivamente a companhia, porque o ser humano ali não se companha. Uma menina perde sua irmã gêmea, desacompanhada, busca uma compensação nas palavas e na natureza da Islândia para essa solidão. Se Deus existir é uma menina e o planeta é uma menina e as coisas que se multiplicam e advêm da fertilidade são femininas.

               paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Valter Hugo Mãe. A Desumanização. SP, Cosac Naify, 2014, 224 pp. R$ 25,00


domingo, 12 de outubro de 2014

Gente independente

Quem me mostrou o escritor islandês Halldór Laxness foi Valter Hugo Mãe em seu romance Desumanização (próxima postagem).Halldór parece nos dizer em seu longo, belo e poético romance Gente independente, que um homem não é independente a menos que tenha coragem de resistir sozinho. Nunca  devemos desistir enquanto estamos vivos, mesmo que roubem tudo da gente. Quando não há mais nada,   sempre se pode dizer que o ar que respiramos é nosso, ou pelo menos a gente pode dizer que o toma de empréstimo. Quem fica sozinho é o mais forte. O homem nasce sozinho. O homem morre sozinho. A capacidade de resistir sozinho não é a perfeição da vida, o objetivo? Lendo o livro, o leitor poderá entender por que Bjartur pensa dessa forma.

Bjartur da Casa Estival conseguira comprar uma propriedade na zona rural da Islândia, desvalorizada pelo fato de os habitantes do lugar acreditarem que havia espíritos perigosos nos penhascos próximos ao local. Bjartur não acreditava em espíritos que pudessem interferir em seu destino.  Era dono de uma propriedade. No prazo de doze anos pagaria o último centavo pela propriedade, um total de trinta anos. Era um rei em seu próprio reino. Sua mulher era sua cônjuge legal, embora não fosse virgem quando casaram. Ásta Sólilja,  suposta filha de um relacionamento anterior da mulher o transformará de forma definitiva ao final da narrativa.

Leia esse belo trecho que relata uma conversa do neto de Bjartur com a avó, sobre a morte:

Desde o momento em que ele dera a primeira piscadela sonolenta até o instante em que as pálpebras pesadas finalmente se abriam, não eram meramente horas que se seguiam a horas; não, século após século pela vastidão incomensurável da manhã, mundo após mundo, como nas visões de um cego, a realidade seguia-se à realidade e não era mais realidade - a luz tornava-se mais brilhante. Tão distante está o dia do inverno em sua própria manhã. Mesmo sua manhã está distante de si mesma. O primeiro frágil vislumbre no horizonte e a claridade plena na janela na hora do café são como dois começos diferentes, dois pontos de partida. E, uma vez que na aurora até sua manhã está distante, o que ser seu anoitecer? Manhã, meio-dia e tarde estão tão distantes quanto os países que sonhamos ver quando crescermos; o anoitecer tão remoto e irreal quanto a morte sobre a qual o caçula ficou ontem sabendo, a morte que leva as criancinhas de suas mães e faz o ministro enterrá-las no jardim do intendente, a morte da qual ninguém volta, como nas histórias da avó, a morte que chamará você também, quando ficar tão velho que se torne criança novamente.
- Então são apenas os bebês que morrem? - perguntou ele.
Por que perguntara?
Foi porque ontem seu pai havia atravessado as fazendas com o bebê que tinha morrido. Ele carregara-o numa caixa nas costas para ser enterrado pelo ministro e pelo intendente. O ministro cavaria um buraco no pátio da capela do intendente e cantaria uma canção.
- Algum dia serei bebê de novo? - perguntou o menino de sete anos.
E sua mãe, que lhe havia cantado extraordidinárias canções e lhe falado tudo sobre os países estrangeiros, respondeu debilmente do leito em que estava acamada.
- Quando uma pessoa fica muito velha, torna-se novamente um bebezinho.
- E morre? - perguntou o menino.
Foi uma corda em seu peito que se rompeu, uma dessas delicadas cordas da infância que se rompem antes que a pessoa tenha tempo de perceber que são capazes de soar; e essas cordas não soam mais; doravante são apenas uma lembrança de dias incríveis.
- Todos nós morremos.
Mais tarde nesse dia, ele tocara no assunto novamente, dessa vez com a avó:
- Eu sei de alguém que  nunca morrerá - disse ele.
É verdade, meu bichinho? - perguntou ela, perscrutando-o de cima do nariz com a cabeça inclinada para o lado, como era seu costume quando estava olhando para alguém. - E quem seria este?
Meu pai - respondeu o menino, decidido. No entanto, ele não tinha certeza absoluta de que não estaria cometendo um erro, porque continuou olhando para a avó com olhos interrogativos.
- Ah, ele morrerá, claro que morrerá - rosnou a velha, impiedosa, quase exultante, e soltou um sonoro suspiro pelo nariz.
Essa resposta apenas despertou a teimosia do menino, que perguntou:
- Vovó, a colher de pau vai morrer um dia?
- Agora chega - explodiu a velha, como se achasse que ele estivesse zombando dela. 
- Mas, vovó, e a panela preta? Ela vai morrer um dia?
- Tolice, criança - replicou ela. - Como pode uma coisa morrer quando já está morta?
- Mas a colher e a panela não estão mortas - disse o garotinho. - Eu sei que elas não estão mortas. Quando acordo de manhã, sempre as escuto conversando.
Que bobagem fizera: havia revelado um segredo que só ele conhecia, pois só ele descobrira, durante a que talvez tenha sido uma das mais notáveis todas as vastidões matinais do tempo, que as caçarolas e panelas e outros utensílios de cozinha mudavam de forma e se transformavam e homens e mulheres. De manhã cedo, quando ficava deitado e acordado, muito antes dos outros, ouvia-os conversando entre si com a compostura séria e o vocabulário solene e exclusivo dos utensílios de cozinha. Tampouco foi apenas por acaso que ele se referira primeiro à colher de pau, pois a colher de pau, afinal de contas, é uma espécie de aristocrata entre os utensílios,; raramente é usada, e quase sempre para a sopa de carne, passa a maior parte do tempo pendurada na parede em imaculada limpeza e ócio decorativo. Entretanto, assim que é trazido para baixo o papel que desempenha na panela é o mais notável. O menino, portanto, considerava a colher de pau com particular respeito e achava que não havia ninguém à qual ele pudesse compará-la senão com a esposa do intendente. A panela preta, que quase estava cheia até à borda e às vezes tinha uma crosta queimada no fundo e muita fuligem embaixo, a panela preta não era ninguém mais que o intendente de Mýri, cuja boca sempre estava cheia de tabaco. Era fácil ver que às vezes ele fervia e devia haver um fogo em seu interior, e que ele tinha uma esposa de intendente para mexê-lo para que ele não transbordasse em ocasiões especiais. o  esmo acontecia com as outras coisas da cozinha: no escuro, transformavam-se em homens e mulheres.

Halldór Laxness (1902/1998) ganhou o Nobel de Literatura de 1955

A edição do livro esgotada, mas você poderá encontrar o livro em algumas livrarias que ainda o têm em estoque. Vá ao buscapé


          paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Halldór Laxness. Gente independente. Rio, Globo, 2004, 680 pp, R$ 50,00








domingo, 5 de outubro de 2014

A sagração dos ossos


Ivan Junqueira morreu agora, em 03 de julho.  A sagração dos ossos, livro de poemas lançado em 1994, que lhe deu o Prêmio Jabuti, resgata a lembrança dos mortos, da vida que foi , portanto não é mais. A infância para o poeta é uma canoa que naufraga e a bordo não traz senão fantasmas.





Espelho

O duro espelho me reflete:
olhos míopes que pouco enxergam,
lábios que muita vez se cerram,
rugas que me entalham a testa,

as pernas magras, talvez lerdas,
as mãos ossudas e irrequietas,
a barba cujo fio enfeza,
os pés que percorreram léguas.

E tudo mais que dele emerge,
de muito pouco ou nenhum préstimo,
pois logo no aço o tempo - névoa -
dissolve os traços mais perpétuos.

Mas algo de mim, certa inépcia
para entender o que me cerca,
ali se furta ao olho pérfido
de quem se crê o seu intérprete.

E não só: sequer uma réplica
da luz que em mim sucumbe à treva
no álgido espelho reverbera
ou deixa um risco de seu périplo.

Algo de mim: renirsism répteis,
algum antigo e inútil verso,
a alma de um rei que, sem remédio,
se consumia na quimera

de submeter servos e glebas,
mas que findou seus dias déspotas
em meio às moscas da taverna
e ao pouco pó de algumas vértebras.

Todo esse lodo e essa miséria...
E deles sequer um reflexo,
como se o espelho, mais que o inferno,
lhes recusasse alívio ou crédito.

Olho-me ali, e nem o espectro
de quem sou (ou fui) se revela;
vejo-lhe apenas a epiderme,
mas não o fundo, que é secreto.


Poeta de qualidade aprimorada, mas pouquíssimo lido, também adquiriu fama de excelente tradutor, especialmente da obra de T. S. Eliot, Dilan Thomas e Baudelaire (As Flores do mal teve inúmeros comentários honrosos graças à tradução de Junqueira). No programa de televisão em homenagem ao poeta, na data de sua morte (Globonews), o poeta falava que ser poeta é uma destinação. Tentou fugir da poesia, por que o poeta tem destino difícil, sofre muito, há que se pensar que não haverá recompensa financeira, já que poesia não vende. Mas ele não conseguiu e tornou-se um poeta maior muito pouco lido, como toda poesia é.

Seu primeiro ímpeto para traduzir poesia se deu quando leu pela primeira vez Os quatro quartetos, de T. S. Eliot, no original. Eliot lhe dizia tudo que o poeta Junqueira gostaria de dizer em poesia. Então, começou a traduzi-lo para seu bel prazer, para se aproximar mais da poesia do escritor anglo-americano. Aconteceu que Antônio Houaiss leu a tradução e se apaixonou. E o livro foi publicado em português. A partir daí cresceu o respeito da crítica sobre o trabalho de tradução do poeta brasileiro. Traduziu também Baudelaire (As flores do mal ganhou prêmio de melhor tradução), Dilan Thomas e Margueritte Yourcenar. 

O poeta falou também que todo tradutor deve levar em conta que se pode traduzir o que o poeta quis dizer, mas nunca o que ele disse. Num certo sentido a poesia seria intraduzível. Mesmo assim, deve acreditar que possa traduzi-la. Em relação ao processo criativo, não se poderia confundir propriamente intuição com inconsciente. Não são campos opostos, são terrenos tangenciais. Há uma participação muito grande do inconsciente na intuição. Só que a intuição não é um processo de transe mediúnico, dentro do processo de intuição. Há todo um processo de escolha intelectual, de percepção intelectual, podendo ser mais ou menos refinada, dependendo da formação intelectual do poeta.

Ivan Junqueira foi membro da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a João Cabral de Melo Neto, de quem teria sido influenciado. Além de poeta, foi ensaísta brilhante. Ao morrer, deixou no prelo dois livros que serão editados em breve. 

Como toda obra literária de qualidade, sua poesia encontra-se praticamente esgotada, uma das exceções é O outro lado, Ed. Record. Você pode encontrá-la nos sebos virtuais por preços bem acessível. Recomendo-lhes A sagração dos ossos, Ed. Civilização Brasileira e Poemas reunidos, Ed. Record. Certamente sua obra deva ser relançada em breve.
O enterro dos ossos

Não pude enterrar meus mortos:
Baixaram todos à cova
Em lentos esquifes sórdidos,
Sem alças de prata ou cobre.

Nenhum bálsamo ou corola
Em seus esquálidos corpos:
Somente uma névoa inglória
Lhes vestia os duros ossos

Foram-se assim, nus e pobres,
Sem deixar feudo ou espólio,
Ou mesmo uma ínfimajóia
Que lhes trouxesse à memória

O frágil brilho de outrora,
Quando lhes coube essa sobra
Que Deus larga pouco importa
Nas mãos de quem caia a esmola.

Passo a passo vida afora,
Sempre os vi em meio às górgonas
Da loucura cujo pólen
Lhes cegou a alma e os olhos.

Não pude enterrar meus mortos.
Sequer aos lábios estóicos
Lhes fiz chegar uma hóstia
Que os curasse dos remorsos.

Quer esquecê-los. Não posso:
Andam sempre à minha roda,
Sussurram, gemem, imploram
E erguem-se às bordas da aurora

Em busca de quem os chore
Ou de algo que lhes transforme
O lodo com que se cobrem
Em ravina luminosa
O poeta
O poeta está morto.
Cerrem-lhe as pálpebras,
o olhar absorto,
a boca cheia de tropos
e metáforas barrocas.
Sepultem aquele broto
que em sua garganta rouca
endureceu com o caroço
e a voz outrora doce
lhe afogou em fundo poço.
Deixem-lhe o corpo exposto
para que vejam o que pôde
fazer a morte e sua foice
com aquele que fora
corola, diamante, voo.
O poeta está morto.
Pouco importa agora o sopro
que lhe deu vida e alvoroço,
como tampouco o áspero corvo
que a alma lhe pôs em fogo.
Restam-lhe os versos, poucos,
e as sílabas já sem fôlego
às quais se agarrou com força
porque as ouvia como agouro
de um fugaz e último coro.
O poeta está morto.
Que nos sangrem, garras de osso,
as suas marcas do zorro.


          paulinhopoa2003@yahoo.com.br 
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Ivan Junqueira. A sagração dos ossos. Rio, Civ. Brasileira, 1994. 120 pp.