quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Anthropos, polis, ethos

Para compreendermos a ética em seu sentido antigo, é preciso ter em vista que o homem grego antigo buscava na ética uma estética da existência. A ética eram caminhos de aperfeiçoamento, que visavam à estilização da vida. Essa estética tomou como referencial a própria beleza inscrita no cosmos. Ordenar-se, tornar-se virtuoso, conquistar um bem, uma excelência, transformar-se em alguém dotado de virtude, seria de certa maneira trazer para a vida pessoal e para a cidade a beleza que esse cosmos revela.
Essa questão da estética da existência vai acontecer no mundo antigo em várias linhas. A forma mais antiga sobre ética vem dos primeiros documentos que ficaram registrados, tornando-se a tradição literária inaugural do ocidente, que são as epopéias homéricas. A ética está identificada à situação natural, espontânea de determinados homens, chamados de os bons, os belos, os melhores. Essas pessoas possuem um bem, porque são os nobres, os descendentes das grandes famílias, consideradas até descendentes de deuses. Daí o sangue nobre ser dotado de excelência. Veremos essa herança mais adiante, em texto sobre a tragédia de Shakespeare.
Vamos encontrar na Grécia, também, a manifestação explicita de uma nova maneira de entender esse estilo e essa nobreza. A questão do sangue perde sentido, à medida que a virtude passa a ser vista como o resultado de um esforço, de um conquista, ou seja, não mais o sangue torna inata a virtude no ser aristocrático, mas é necessário conquistar a virtude através de um esforço, de um trabalho.
Percebe-se, também, que o corpo vivo pode tanto manifestar saúde e beleza, como pode representar doença e feiúra. Ele é saudável e belo quando todas as suas partes estão funcionando de maneira correta e integrada. A saúde do ponto de vista da alma, do ponto de vista da realidade interior do homem, como a saúde do ponto de vista da cidade, também serão fundamentadas no modelo da saúde do corpo. A metáfora do corpo saudável vai ser fortíssima para a construção das estilísticas diferentes que vão ser os vários sistemas filosóficos voltados para a ética.
Por outro lado, o homem se percebe como um ser em trânsito, como um ser navegante, como um ser itinerante. Ele sabe que a sua dimensão é temporal, por isso ele se chama o tempo todo de mortal, em contrapartida aos deuses, que são imortais. O ser humano se constitui no tempo, nele navega, dentro de seu território de duração limitada, que é seu destino. Só que precisa ter um certo rumo, se ele quer construir um caminho voltado para o bem, para o belo, para a virtude.
A metáfora da navegação é fundamental como a metáfora do corpo. E a cidade é entendida por Platão como uma grande nau que exige de cada um determinada função muito bem delimitada, muito bem executada; mas, é importante também que haja alguém capaz de lidar com o leme e estabelecer o rumo certo. A ética, quer na dimensão em que transborda em política quer na dimensão em que se restringe ao campo pessoal e mesmo na esfera subjetiva, interior, tem na navegação um paradigma e um modelo igualmente rico que alguns estudiosos vão explorar.
Acontece que o surgimento da ética no discurso dos filósofos gregos entre o clássico e o helenístico teve destaque justamente no momento de decadência material da pólis. Sócrates, Platão, Aristóteles e Epicuro aparecem no momento em que a sociedade grega em geral, e a ateniense em particular, vivem o momento de maior desagregação interna, de dominação da política pelos demagogos, pela decadência dos velhos modos de vida, da superação da riqueza intelectual pela material.
O dinamismo da sociedade grega acaba criando os conflitos da crescente camada de comerciantes enriquecidos contra as velhas aristocracias – cuja base do poder era de um lado a tradição e de outro a propriedade fundiária – e termina com a ascensão dos tiranos – magnatas que se postulam defensores das camadas mais pobres da população, evoluindo para mundo que iria, aos poucos, infiltrar-se no antigo, voltar contra si mesmos os princípios tanto da democracia quanto da filosofia. Estimula-se o florescimento da demagogia. É o período dos grandes monumentos, do supremo desenvolvimento da escultura, da mais ampla extensão da democracia que chega à sofisticação de pagar uma contribuição a todos os cidadãos que compareçam às Assembléias, como absoluta garantia do direito a todos a participar das decisões da cidade. É também o momento no qual os sábios de todo o mundo helênico – da Ásia Menor à Calábria, então chamada de Magna Grécia – convergem à Atenas na busca tanto de um ambiente de efervescência cultural como de patronos, os mecenas.
O fruto filosófico deste período atribulado são os sofistas e seu relativismo moral. O pensamento sofista não deixa de ser um ataque à hipocrisia ateniense no qual os velhos valores não são mais evocados senão como uma justificativa da dominação de Atenas sobre outros Estados, dos ricos demagogos sobre os velhos. É nesse contexto de decadência e crise moral que os esforços intelectuais de Sócrates, Platão, Aristóteles devem ser entendidos. Quando se enxerga a questão por esse prisma, o fato de Sócrates ter "inventado" a Ética, revela não o surgimento de uma nova ordem, mas antes a necessidade de se refletir, sistematizar e defender conceitos que antes eram dados como automáticos, em especial quanto à essência da ética, ou seja, as relações entre o bem comum e a felicidade individual.
Basta saber o que é a bondade para ser bom?
Esse pressuposto básico da Ética de Sócrates – que basta saber o que é bondade para que se seja bom - pode parecer ingênuo no mundo de hoje, mas na sua época era uma noção perfeitamente coerente com o pensamento – ainda que não com a prática – da sociedade grega.
É com os sofistas que Sócrates dialoga, em um esforço para refutar seu relativismo moral cuja validação, sabe ele, significaria o fim do "espírito grego". O grande mérito de Sócrates foi enfrentar de forma virulenta a hipocrisia da sociedade ateniense, cuja resposta aos sofistas era apenas a reafirmação insincera dos velhos valores. Sócrates defende a identidade entre os interesses individuais e os comunitários como único caminho para a felicidade, o que implica na valorização da bondade, da moderação dos apetites, na busca do conhecimento.
Assim ao mesmo tempo Sócrates busca uma volta às velhas tradições da Cidadania, mas para isso precisa voltar-se contra essas próprias tradições. Ele aceita os princípios gerais definidos por aquelas tradições, mas apenas como um conceito, uma categoria a ser investigada pela mente humana, rejeitando tanto a forma pela qual estes valores são apreendidos como o conteúdo usualmente atribuído a eles.
À questão sobre o que é a Justiça – para dar um exemplo prático desta dupla oposição de Sócrates – os sofistas dizem que ela é a convenção estabelecida pelo mais forte para dominar o mais fraco; os tradicionalistas a entendem como o conjunto das instituições que definem o "Império da Lei". Sócrates diz que ambos estão certos e errados ao mesmo tempo. Os sofistas não estão errados, porque a descrição deles corresponde ao estado de coisas na época, os tradicionalistas também não estão errados porque o princípio que teoricamente rege aquelas instituições seriam aqueles elevados valores da cidadania. Mas ambos estão errados, porque a deterioração da justiça não significa que não exista objetivamente uma Justiça e que esta não seja uma meta a ser alcançada – ao contrário do que pensam os sofistas – e porque o que as pessoas entendem como justiça não é justiça de fato, apenas uma visão distorcida daquele conceito – ao contrário do que dizem os tradicionalistas. O problema ético, para Sócrates é, sobretudo, uma questão de definição de termos.
A essência da Ética Socrática é o poder libertador do verdadeiro conhecimento confrontado com a hipocrisia. É através dese conhecimento, crê Sócrates, que cada indivíduo é capaz de um dia chegar à compreensão do que é o Bem, conhecimento que por si só tem efeito transformador tanto de quem o adquire como da sociedade na qual ele vive.

Platão e a sociedade perfeita
Platão defendia que o homem estava em contato permanente com dois tipos de realidade: a inteligível (a realidade imutável, igual a si mesma) e a sensível (todas as coisas que nos afetam os sentidos são realidades dependentes, mutáveis, imagens das realidades inteligíveis). Alguma coisa é, na medida em que particida da Ideia desse objeto. Platão cria, então, sua Teoria das Ideias. O que há de permanente em um objeto é a Ideia; mais precisamente, a participação desse objeto na sua Ideia correspondente.
Assim como Sócrates, Platão pensava que a essência do conhecimento não se poderia buscar nas coisas, pois estas variam, mudam, surgem e se vão. A verdade plena, deve ser buscada em algo estável, nas verdadeiras causas, pois logicamente a verdade não pode variar e, se há uma verdade essencial para os homens, essa verdade deve valer para todas as pessoas. Logo, a verdade deve ser buscada em algo superior.
Também o conhecimento tinha fins morais, isto é, levar o homem à bondade e à felicidade. Assim, a forma de conhecimento era um reconhecimento, que faria o homem dar-se conta das verdades que sempre possuíra e que o levavam a discernir melhor dentre as aparências de verdades e as verdades. A obtenção do autoconhecimento era um caminho árduo e metódico.
A resposta de Platão à necessidade de se resgatar o velho sentido da Ética, da Justiça e da Moral, perdidos durante o período de crescimento e enriquecimento de Atenas, contaminados pela hipocrisia, é a "volta a uma sociedade mais simples". Mas não uma volta ao passado real, antes a um passado imaginário situado em algum lugar do futuro, onde os velhos valores – renovados a partir das indagações e críticas de Sócrates – possam orientar uma sociedade estável que tende à perfeição.
Assim, à dissociação entre o mundo real e os valores éticos, Platão contrapõe a necessidade de uma reconstrução da sociedade segundo esses valores, por mais radical que possa parecer. O eixo da ampla reforma sugerida por Platão, para construir a sociedade perfeita, é a substituição do poder exercido pelos mais ricos que reinava na Atenas Imperial dos mercadores, por uma em que os governantes seriam os melhores dentre os homens de seu tempo, em termos de conhecimento e sabedoria.
Aristóteles e a ética como ciência das condutas
Aluno de Platão, Aristóteles discorda de uma parte fundamental da sua filosofia, que concebe dois mundos existentes: aquele que é apreendido por nossos sentidos, o mundo concreto -, em constante mutação; e outro mundo - abstrato -, o das ideias, acessível somente pelo intelecto, imutável e independente do tempo e do espaço material. Aristóteles, ao contrário, defende a existência de um único mundo: este em que vivemos. O que está além de nossa experiência sensível não pode ser nada para nós.
Para Aristóteles, a ética não se ocupa com aquilo que no homem é essencial e imutável, mas daquilo que pode ser obtido por ações repetidas, disposições adquiridas ou hábitos que constituem as virtudes e os vícios. Seu objetivo último é garantir ou possibilitar a conquista da felicidade.
Na filosofia aristotélica, a política é um desdobramento natural da ética. Ambas, na verdade, compõem a unidade do que Aristóteles chamava de filosofia prática. Se a ética está preocupada com a felicidade individual do homem, a política se preocupa com a felicidade coletiva da pólis. Desse modo, é tarefa da política investigar e descobrir quais são as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva. Trata-se, portanto, de investigar a constituição do estado.

O universo interior
Epicuro foi outro dos maiores pensadores éticos da história do pensamento e suas ideias têm extraordinária atualidade. Para o filósofo, o sentido de liberdade adquire o sentido de libertação interior. Em grande parte, sua ética é um ensino de virtuosismo pessoal, para que se possa ser feliz, sereno e ter prazer, mesmo na adversidade.
Epicuro viveu no século III a.C, numa Grecia que não era mais livre, mas que fazia parte do império macedônico. Não era mais um mosaico de cidades com sua própria fisionomia cultural. Era o pedaço de um grande império que se estendia até a Asia. Agora as leis irmanam de cima, de um imperador ou rei, e têm de se curvar a sua vontade. Mas, para Epicuro, mesmo nesses momentos de cerceamento da liberdade, há a possibilidade de trabalhar o universo interior, que pode ser objeto de processo de libertação pessoal. No tempo de adversidade, mesmo assim, o homem pode e deve ser feliz, porque nasceu para a felicidade. Devia-se, então, partir para a saúde da alma, pelo afastamento da ignorância, da crendice, através de um conhecimento que aclara a mente interior, fazendo com que o homem, a partir do conhecimento e da natureza das coisas, possa posicionar-se e compreender sua existência e seu papel.
Compreensão da natureza das coisas. Era isso! Procura e valorização do prazer, afirmando que o homem não existe em função do sofrimento, mas da felicidade. Como isso é feito? Através de uma autogestão de si mesmo. Uma independência interior, um desvio da fatalidade externa, administrando sua vida de forma saudável. Alternativa: ou vida política ou serenidade. Hoje, podemos ver isso através da diferença entre o campo da vida pessoal e o campo da vida pública. A vida pública é um campo de antagonismo. A vida pessoal, ao contrário, deve ser uma vida de serenidade, de felicidade.
Se a procura da liberdade interior é uma procura que retira o homem da turbulência da pólis, ele se recolhe entre os seus e procura no intercambio, nas conversas, no esforço de grupo, tentar manter aí o seu trabalho interior e só assim, dentro da amizade, é que esse projeto pode ser realidade. Não se trata de isolar o homem, mas substituir a pólis pelo grupo, com a sua amizade, que está no fundo do próprio projeto da filosofia, que é o amor à sabedoria, a amizade pelo conhecimento, que aproxima os amigos no mesmo processo de busca do conhecimento.
É importante, portanto, lembrar que a ética de Epicuro fundamenta-se, primeiro, no conhecimento, no apoio à razão, na recusa ao obscurantismo, na recusa à crendice, na colocação do mundo como alguma coisa dentro da possibilidade da medida humana. O mundo é mensurável pela razão do homem. É essa idéia básica que afasta tudo que é obscuro, intangível, absolutamente insondável, que faz com que os próprios deuses sejam compreensíveis e os homens, a natureza, tudo, sejam explicáveis racionalmente. Na verdade, o que Epicuro propõe, é que a amizade que se concretiza no jardim desses seres que procuram cada vez mais a clareza e a liberdade interior e que estimula reciprocamente a permanecer nesse esforço, imite à distancia os deuses. Não que os deuses venham fazer a libertação, os deuses são serenos justamente porque não estão preocupados com a humanidade e com o mundo, eles vivem plenamente a serenidade porque estão tão distante dos homens, quanto os homens do jardim se separam da pólis turbulenta.
O direito à felicidade, ao bem, à plenitude de vida, à cidadania completa, não é ilimitado como fora na democracia ateniense de antigamente. Lá, apenas alguns podiam fazer esse trabalho: os homens maiores, nascidos em Atenas e não escravos. Com Epicuro, a felicidade está acessível a qualquer um, independentemente de posição social. Por isso, suas idéias chegam até nós com extrema atualidade.
Não há adversidade externa que decida o nosso projeto ético pessoal. A dimensão pessoal da busca do bem da felicidade é subjetiva, intransferível e só pode ser feita por cada um e ou com o apoio dos que se aproximam do mesmo ideal.
Na ética de Epicuro:
- não há nada a temer quanto aos deuses
- Não há necessidade de temer a morte
- a felicidade é possível
- podemos escapar à dor
Na verdade, isso é um resumo, como uma receita da ética de Epicuro. A questão da saúde aparece aí com toda a clareza. A felicidade é uma conquista, é um direito de qualquer um, todos devem buscar o bem o prazer, a serenidade, não importando a quem. É o resultado de um luta incessante de autolibertação, de criação do espaço de sua autonomia e de busca permanente de seu prazer sábio e sereno.
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Fontes de consulta:
Convite à filosofia. Marilena Chauí, ed. Ática. 2003
Ética. Pessanha et alii. Cia. de Bolso. 2007
O que é ética. Alvaro Valls. Brasiliense. 1996
http://pt.wikipedia.org/wiki/Plat%C3%A3o (sobre Platão)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teles (sobre Aristóteles)
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3crates (sobre Sócrates)
http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%B3lis (sobre pólis)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Epicuro (sobre Epicuro)

Um comentário:

  1. Gostei muito dos comentários sobre livros, filmes e aposentadoria: meus assuntos preferidos. Bjs Heluza

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