terça-feira, 1 de junho de 2010

A cegueira branca

Imaginem uma cidade moderna que represente o mundo contemporâneo, com excelente padrão de vida (isso não exclui o fato de nela haver imigrantes de todas as partes, assim como pobres e moradores de rua). Nesse lugar, de repente, ocorre uma epidemia de cegueira branca que toma conta de um número de pessoas de padrão de vida, cores e raças diferentes. Essas pessoas, à medida que se contaminam, são isoladas em um asilo. Forças externas que tomam conta do local são fortemente armadas. Não entram, assim como impedem qualquer infectado de sair. No gueto, eles tentam se organizar para viver em comunidade. Um reaprendizado de vivência coletiva. O ambiente é fétido, precisa ser limpo. Dividem-se tarefas, distribuem-se em alas. A comida é racionada. Em meio a isso, todas as corruptelas do sistema social reaparecem. Disputa pelo poder, autoritarismo, roubo, submissão, subjugação, humilhação. Violência e mortes são inevitáveis. Agora preciso dizer que no grupo há uma mulher que enxerga. Ela é que guarda a o grupo. Trata de por ordem "na casa". Busca alternativas para solucionar conflitos. Acaba conseguindo fugir com alguns cegos, de volta à cidade. No caminho, encontram rua imundas, pessoas vivendo em condições sub-humanas, disputando comida com cães. Bem, essa mulher busca encontrar um pouco de comida para o grupo, quando consegue quase é linchada pela população cega, mas consegue escapar. Ela senta-se numa escadaria para descansar e observa os cães comendo uma pessoa morta e demais dejetos. Um cão aproxima-se dela e lambe seu rosto. Ela acaricia o cão: ela gosta de cães assim como ama os seres humanos. Reune o grupo em sua casa, todos se banham, almoçam em harmonia, em comunhão. Todos estão felizes. Nesse momento um dos cegos volta a enxergar. Parece que o amor dessa mulher pelas pessoas, seu cuidado, seu carinho, serviu como antídoto para que as cores voltassem a se distinguir no branco. As pessoas voltariam a enxergar.


Vocês viram que estou falando do filme Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meireles, baseado no livro de José Saramago. Revi ontem o filme no canal Telecine Cult e gostei bem mais do que da primeira vez. Antes, o excesso de branco me incomodou, não havia percebido a intenção do diretor em passar a sensação de cegueira que os personagens sentem. Achava que o filme perdia um pouco da beleza estética, o excesso de branco deixava o filme meio "sujo". Mas isso foi intencional e não desmerece o talento do diretor. Os americanos não gostaram do filme. A imprensa internacional o recebeu com frieza. Uma associação norte-americana de deficientes visuais protestou, sob alegação de que o filme era preconceituoso, já que a cegueira das pessoas contaminava umas às outras. E o filme acabou não fazendo sucesso. Uma pena. Para os americanos o que conta é um filme de ação que não leve a grandes interpretações metafóricas sobre os males da humanidade.

Saramago e também Meireles não pensaram numa provável raiz preconceituosa dos vários conceitos de cegueira, quando fizeram suas obras. Besteira dos americanos. A mensagem do filme, no caso, é muito mais do que a maneira de enxergar um filme preconceituoso. Saramago, escritor, ateu e comunista, é conhecido por despertar em seus leitores diversos questionamentos morais e existenciais que habitam em cada um de nós. Acho que a associação dos deficientes visuais norte-americana ficou contaminada pela cegueira branca.

Um comentário:

  1. Não li o livro, mas adorei o filme, e conversando sobre ele com minha irmã e uma amiga, pensamos que a não-cegueira da mulher ocorreu por ela ter sido a única que não teve medo de pegar a doença, ela não teve medo de se contaminar e ficar cega.
    O medo paralisa e afasta a possibilidade de enfrentarmos a cegueira.

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