segunda-feira, 14 de junho de 2010

O limite do viver

Neste final de semana o Domingo Espetacular mostrou a matéria de um casal de velhinhos - sessenta e tantos anos de casados, segundo a esposa - o marido saíra para caminhar e não voltara até à noite. Junto com ele, a cachorrinha que o seguia sempre. A velhinha, assustada, buscou ajuda dos vizinhos para achar o marido, mas não o encontraram. Pediram ajuda do corpo de bombeiros. Acabaram descobrindo o velhinho no meio de um canavial, durante a madrugada. Ao sentir barulho, a cachorrinha dera sinal e os bombeiros chegaram até ele, de barriga para baixo, ainda vivo.
Enquanto via a matéria, fiquei pensando no que poderia estar passando na cabeça do velhinho naquele momento. Não sou médico neurologista nem geriatra, o que me impressionou no assunto tratado levei para o campo da ficção. O velho não conseguira morrer. Não tivera forças para cavar sua própria cova? Estava vivo para alegria da esposa e para seu desapontamento. A fisionomia do velho era de tristeza, de decepção. O repórter perguntava coisas que ele não respondia. A esposa dizia que ele era tudo na vida dela. Precisava dele. Ele talvez já não precisasse de ninguém.Aquele velhinho personagem, que se perdera por não conceber mais o espaço real da vida, caminhara para o nada. Para o infinito. Saíra da casinha da vida, entrara no delírio do fim do mundo, mesmo. Será que não queria mais viver? O que será que pensa da vida ele, já que ainda está vivo? Já não pensa mais nada.
O velhinho da matéria da televisão me impressionou e incomodou meu lado velho, que está se aproximando cotidianamente e sempre. Como estarei eu com a idade daquele velhinho? Ele aparentava uns noventa anos... Fiquei incomodado porque tenho medo da morte. Gostaria de viver bastante ainda, e bem lúcido com a realidade. Mas ainda não cheguei aos sessenta e ele já está nos noventa. Já deve saber mais da morte que da vida. Já não domina mais essa vida que tanto aprecio querer viver. Seu domínio é o desejo pelo desconhecido. Quando saiu a caminhar e se perdeu, para ele isso não tinha sido uma perda (perder-se é um caminho), mas um desejo de viver a morte.
Remeto os leitores para dois livros muito bons que retratam o velho como personagem: "O albatroz azul", de João Ubaldo Ribeiro, que retrata a vida de um homem bastante velho, que apesar de muita sabedoria colhida durante a vida, ainda busca um sentido para viver. Outro é "Memória de mis putas tristes", de Gabriel Garcia Marquez. Nele, lemos um homem de noventa anos que programa passar a noite com uma adolescente, para provar a si mesmo e ao mundo, que está vivo.

terça-feira, 8 de junho de 2010

A 60 minutos por hora

Hoje pela manhã, quando voltava do supermercado pela segunda vez, me veio à cabeça a música “A 60 minutos por hora”, de Walter Franco (a música faz parte do ótimo cd de Leila Pinheiro, “Nos horizontes do mundo”, Biscoito Fino). A letra diz: “a 60 minutos por hora/sem pressa nem demora/a 60 minutos por hora pela vida afora/venha, não tenha pressa/pra chegar a lugar nenhum”. Por que me veio essa música na cabeça?
Sou um cara apressadinho por natureza. A pressa sempre fez parte de minha vida, mesmo não precisando dela. O que me motiva isso é a ansiedade. Sou um cara ansioso à beça. Seja o que for que eu faça, faço com uma tensão desnecessária, que já me prejudicou muitas vezes. Desde criança fui assim, apressadinho, fazendo tudo correndo, me livrando das tarefas obrigatórias para poder brincar em paz. Hoje, já na adolescência do envelhecer, aparentemente sou um sujeito calmo e tranquilo. Mas internamente...
A ansiedade faz parte da minha personalidade, paciência.Tenho de carregá-la da forma mais diplomática possível, evitando o estresse.
Voltando ao supermercado, eu tenho o hábito de entrar nele já de costas, fazendo tudo rapidamente, pois não gosto daquele ambiente, principalmente quando há muita gente se pechando (conhecem essa? Os rio-grandinos como eu conhecem essa gíria), filas no caixa, demora. Apesar de me trabalhar há alguns anos para lidar com essa bruta ansiedade, às vezes me atropelo, esqueço de comprar metade do que precisava, e acabo voltando para completar a tarefa. Foi na segunda volta do supermercado,hoje pela manhã, já resignado com minhas imperfeições, que me toquei cantando essa música que na aparência é engraçada, mas contém uma filosofia de vida: as coisas acontecem num tempo. Se você for apressadinho, vai multiplicar esse tempo por dois. Portanto, “a 60 minutos por hora/sem pressa e sem demora”. Grande Walter Franco!
Obs.: para quem não conhece ou não lembra de Walter Franco, ele ficou conhecido na década de 70 com a música “Cabeça”. Ela ganhou um festival internacional da canção, mas destituíram o júri, não reconheceram a música, e quem acabou ganhando o festival foi Jorge Ben Jor com “Fio Maravilha”. Chico Buarque gravou uma música de Walter Franco no disco Sinal Fechado (1974), chamada “Me deixe mudo” (“não me pergunte/não me responda/não me procure/e não se esconda/não diga nada/saiba de tudo/fique calada/me deixe mudo”). Era no tempo da ditadura e Chico Buarque, proibido de gravar suas próprias canções, lançou o disco com composições de outros autores.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Preconceito e razão

Li no sítio do jornal A Capa desta semana, que a torcida do São Paulo publicara um manifesto na internet, ofendendo o jogador Richarlyson, depois que circulou a notícia que o jogador havia sido visto numa boate gay paulistana. O texto que havia sido publicado pela torcida começava assim: "Não é de hoje que esse traste suja a imagem sagrada do São Paulo Futebol Clube com seu jeito afeminado. Dentro de campo, sequer justifica isso com um futebol decente. O fato é que Richarlyson é o antimarketing do clube, isso pode afetar inclusive o crescimento da torcida são-paulina. “ Após a repercussão do caso, a direção retirou a notícia do ar e se contradisse, afirmando que a torcida organizada são-paulina não era preconceituosa, só estava querendo cobrar do Richarlyson uma postura mais efetiva em campo, já que não estava mostrando bom jogo.
Ora, o que se viu acima é uma atitude preconceituosa, sim. As pessoas têm medo de conviver com a diferença, ainda mais quando essa diferença possa envolver a sexualidade de alguém.
Richarlyson nunca afirmou publicamente que fosse homossexual, pelo contrário. Bobo ele se, sendo, o dissesse. Com uma imprensa de quinta categoria, como a nossa, imagina o estrago que o craque faria em sua carreira, num esporte eminentemente machista.
Por que será que somos preconceituosos? Já notaram pessoas que contam piadas sobre viados justificando-se imediatamente, dizendo que não têm preconceito, que é apenas uma brincadeira? Com negros também se faz isso. Com índios (“fazer uma indiada”), com loiras, etc. O interessante nisso tudo é que quando a diferença é bi volt, o fato se abranda um pouquinho: o homossexual afetado é visto com o mesmo sarcasmo que o homossexual com comportamento semelhante ao heterossexual. A diferença é que o afetado, muitas vezes, acaba compactuando a visão machista da maioria heterossexual, submetendo-se ao preconceituoso.
Mas as coisas, parece, estão mudando. Por exemplo, minha visão da homossexualidade anda em crise. Já não ando mais acreditando em uma só homossexualidade, há homossexualidades. Existem os afetados porque se sentem bem assim, tanto quanto os gueis normais (com comportamento social hétero). A visão de bissexualidade está adquirindo um status de aceitação maior, visto que há tempos atrás, o bissexual era visto como o homossexual que não se assumia (ainda que os não-assumidos existam em número relevante).
Bem, conviver com a diferença, não é fácil. Envolve receio, medo, insegurança, inveja, um monte de coisas. É muito bom que os diferentes se mostrem, mesmo os que sejam héteros como Richarlyson se diz ser. Caetano Veloso escandalizou nas décadas de 60 e 70 e não é homossexual. Eu, que tenho minha homofobia presente, devido à educação, aos meus receios e inseguranças, procuro fazer o exercício de enxergar a diferença como normal e necessária, pois isso é saudável. Parabéns a Richarlyson por ser do jeito que gosta, porque se sente bem assim.
Para quem se interessa sobre o tema homossexualidade, tem um livrinho interessante que pode ser encontrado em sebos: O que é homossexualidade, de Peter Fry e Edward Macrae. Coleção Primeiros Passos, Ed. Brasiliense.

Campanha mundial contra a fome

A FAO, Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, está realizando uma campanha mundial contra a fome (1billionhungry) lançada no dia 11 de maio, que consiste na assinatura de uma petição globlal, on-line, pedindo que as pessoas não fiquem indiferentes ao fato de que cerca de um bilhão de pessoas no mundo viva com fome e, estimulando os governos a fazerem da erradicação da fome sua principal prioridade. Isso porque nos últimos 3 anos houve um aumento de 200 milhões de pessoas em insegurança alimentar

O objetivo é chamar atenção para o problema e pedir um basta à fome. !!!

O link para a petição é http://www.1billionhungry.org

Sua participação é muito importante para esse movimento. Assine e divulgue mais essa grande mobilização em prol de uma sociedade mais fraterna.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Meninos e meninas

Estou lendo a autobiografia de Sartre (As palavras, 6ª ed., RJ, Nova Fronteira, 2000. A obra pode ser encontrada em sebos da Estante Virtual). Nela, o escritor conta sua infância ao lado da mãe e do avô materno – seu pai morrera quando Jean-Paul era muito pequeno. Numa passagem do livro, ele narra a sensação de que sua mãe talvez quisesse tê-lo como menina, fazia-o usar cabelos compridos, além de outros mimos que ele sentia como características dadas às meninas. Um belo dia, o avô o leva ao barbeiro e acaba com os devaneios da mãe.

Isso despertou a lembrança de uma conversa que tive com minha mãe, quando eu era criança. Pedi para lavar a louça do almoço e ela não quis, disse que se eu aprendesse tarefas femininas, quando me casasse iria fazer as lidas domésticas que caberiam à minha mulher. Hoje moro sozinho, aprendi a lavar louça, cozinhar. Se minha mãe, além de me ter deixado lavar a louça, tivesse me ensinado a cozinhar, teria herdado muito de seu gostoso tempero caseiro.

Hoje em dia, apesar dos avanços de gênero, ainda percebo muito da forma de pensar de minha mãe na postura das mulheres. A clássica divisão das tarefas domésticas existe, apesar da ajuda masculina. Faz parte da cultura do ser humano em qualquer lugar. Nas separações de casais com filhos, ainda é comum a presença deles junto às mães.

Na educação, por que ainda se veem mulheres diversificando costumes que poderiam ser semelhantes entre os sexos? É da cultura? É do preconceito feminino contra si próprio, criando o menino diferentemente da menina? Será que espelham no filho o desejo do homem ideal? A igualdade ou diversificação de comportamento entre homens e mulheres ainda tem maior responsabilidade na presença da mãe? As mulher talvez possam responder melhor a esses questionamentos.

(Aproveito a oportunidade para divulgar o blog


www.familiaseparadapelaalienacaoparental.blogspot.com)

Palhaço

Um dia desses escrevi para meu amiço Ciço, em Aracaju, fazendo-lhe um elogio mais ou menos assim, de que ele era meu palhaço preferido. Cícero é dramaturgo, ator e diretor. Um excelente clown, mas ele não acredita em mim. Pois não é que logo depois do elogio tratei de lhe explicar o sentido que queria dar ao termo?! Bobagem minha. Preconceito. Ele entendeu e aceitou muito bem o elogio, pois tem a sensibilidade do ator e do homem sensível que compreende a mágica importância dos palhaços na vida das pessoas.


Sempre tive uma simpatia especial pelos palhaços. Eles fizeram parte de minha infância no interior de Pedro Osório, quando os circos passavam por lá. O palhaço Carequinha também me cativou. Conhecia sua arte através de seus discos de música infantil: "o bom menino não faz xixi na cama/o bom menino não faz malcriação"... Mais tarde passei a acompanhá-lo na televisão.

Não gosto quando as pessoas ofendem alguém usando o termo plhaço pejorativamente. Eles estão equivocados. Não se dão conta do uso errado do termo, pois o palhaço é um profissional digno, que trabalha para nos fazer rir. O palhaço permite que a gente dê gargalhadas, fazendo-nos pensar que as palhaçadas que ele faz são dele, quando na verdade rimos de nós mesmos; as situações engraçadas que ele aponta já vivenciamos de uma forma ou de outra.

Dizem que rir da gente mesmo faz bem. Concordo. O riso é uma alternativa para o trágico. Nos aponta para o fato de que nem tudo está perdido, ou o que de ruim acontece pode ser passageiro, faz parte da vida. Daqui a pouco nosso personagem atrapalhado, nosso clown, nos fará rir, como rimos do palhaço.

Aproveito para sugerir a crônica de Cecília Meireles, sobre o tema, intitulada Programa de circo (do livro Escolha seu sonho, 26ª ed, RJ, Record, 2005). A escritora tem várias crôonicas abordando a importância do circo na vida das pessoas.

Ensinar, aprender o desenvolvimento em uma perspectiva pós-vygotskyana.

Certa vez estava em Brasília para reforumulação de um curso de linha do Banco do Brasil e o colega que coordenava o projeto me disse que se todos os doutores em educação voltassem às salas de aula das séries iniciais, a educação teria outro sentido, mais produtivo e verdadeiro. Penso que ele tenha sua razão. A educação evolui muito a teoria, mas ainda se observa a prática centrada no tradicionalismo: professor dando aula e aluno ouvindo. Meu trabalho como educador formador de alfabetizadores de jovens e adultos me traz o desejo de poder observar in loco a atuação dos alfabetizadores formados nos cursos. Poder observar a postura mediadora do alfabetizador, segundo que se discute sobre Vygotsky e ZDP.


Mas, como sou também simpático às teorias, quero partilhar com quem gosta de teoria de educação, especialmente de Vygotsky, uma palestra que assisti na Faculdade de Educação da Ufrgs, sugerida por Júlio Zacouteguy, nesta terça-feira (25/05/10), com a professora Anna Setsenko, do Programa de Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento, envolvida com educação urbana e com o Centro de Estudos da Mulher e Sociedade do Centro de Pós-Graduação da City University of New York (CUNY, NY). A pesquisadora é reconhecida como uma representante proeminente da teoria da atividade de Vygotsky. Desenvolveu a noção de aprendizagem e desenvolvimento enquanto projetos ativistas de devir histórico, dentro de práticas transformadoras colaborativas. A palestra foi em inglês, mas as lâminas expostas estavam em português. O relato:

- a professora começou dizendo que não há nada mais prático que uma boa teoria. E que todos temos uma teoria. O importante é saber como nos referir a ela, de acordo com as diversas situações de ensino-aprendizagem.

A seguir, fez um breve histórico das formas de ensino do passado para o presente, criticando o cognitismo, que predominou até bem pouco tempo, em nosso ensino dito tradicional. O cognitismo, segundo ela, peca pelo individualismo. O ser humano pensa sozinho, sem necessariamente comungar com os demais. Passando à atualidade, citou Piaget, Jewey e Vygotsky (também citou Paulo Freire), como defensores de um enfoque educacional mais humanista, com o ser humano envolvido no contexto, numa visão dialética sobre desenvolvimento e aprendizagem.

Falou, a seguir, em "teoria relacional" , segundo ela um grande marco na história aprendizagem, pois põe balizas ao que até então era tido como definitivo no campo das motivações humanas. E esse fato tem incidências no campo da educação e especialmente no ensino da língua materna, pois até agora pouco tem sido feito para libertar o ensino de línguas da espiral behaviorista que procura partir dos influxos exteriores, o que não tem nenhum valor e nem pode alcançar as motivações intrínsecas que se sedimentaram em cada uma das personalidades dos educandos. Essa teoria aponta para algo ainda mais sério: o processo de formação das motivações dos próprios educadores, pois este influenciará de forma direta suas práticas e, conseqüentemente, as relações estabelecidas com os educandos (o que pode trazer resultados positivos ou negativos, dependendo de variáveis como equilíbrio do professor, ambiente, disponibilidade material, etc).

Também discorreu sobre a "teoria dos sistemas dinâmicos", que consiste numa abordagem que recorre a multidisciplinaridade para fundamentar seus pressupostos. O comportamento humano não obedece a uma progressão linear, ou seja, as variações comportamentais em função do tempo não se dão seguindo uma linha determinada e não maleável. Aqueles que estudam a teoria dos sistemas dinâmicos estão particularmente interessados em saber como um sistema varia ao longo do tempo, passando de um estado estável para outro, devido ao efeito de uma variável específica.

Falou em "teoria ator-rede", que se compreendi bem, seria algo como um estudo para designar um tipo de investigação que visa o mapeamento de situações de um social que não é anterior nas relações entre os atores, mas definido como algo em constante modificação, resultado de entidades surpreendentes, fato que vem quebrar as certezas sobre a composição do mundo em que vivemos. Em um mundo em constante mudança, outros métodos de investigação são necessários para que possam dar conta de campos ainda não explorados, de exigências que se tornam urgentes. Lembro que ela falou em mediação.

Citou Vygotsky para falar na posição ativista transformadora, ou modo expandido; em ponto central da coletividade; em ponto central da transformação; a postura transformadora é uma nova abordagem e metodologia que ajudam a fechar lacunas tradicionais, incluindo teoria versus prática e objetividade versus ética.

Foi concluindo, falando da educação não vista como uma ação no presente, mas como uma ação no futuro.

Terminou citando Vygotsky: "as pessoas precisam compreender as verdades da sociedade, antes que possam compreender suas próprias verdades."

Certamente alguma coisa pode ter ficado confusa neste relato, pois quem conta um conto aumenta um ponto. Mas espero que seja importante para buscarmos mais, pesquisarmos mais essa perspectiva pedagógica.

A cegueira branca

Imaginem uma cidade moderna que represente o mundo contemporâneo, com excelente padrão de vida (isso não exclui o fato de nela haver imigrantes de todas as partes, assim como pobres e moradores de rua). Nesse lugar, de repente, ocorre uma epidemia de cegueira branca que toma conta de um número de pessoas de padrão de vida, cores e raças diferentes. Essas pessoas, à medida que se contaminam, são isoladas em um asilo. Forças externas que tomam conta do local são fortemente armadas. Não entram, assim como impedem qualquer infectado de sair. No gueto, eles tentam se organizar para viver em comunidade. Um reaprendizado de vivência coletiva. O ambiente é fétido, precisa ser limpo. Dividem-se tarefas, distribuem-se em alas. A comida é racionada. Em meio a isso, todas as corruptelas do sistema social reaparecem. Disputa pelo poder, autoritarismo, roubo, submissão, subjugação, humilhação. Violência e mortes são inevitáveis. Agora preciso dizer que no grupo há uma mulher que enxerga. Ela é que guarda a o grupo. Trata de por ordem "na casa". Busca alternativas para solucionar conflitos. Acaba conseguindo fugir com alguns cegos, de volta à cidade. No caminho, encontram rua imundas, pessoas vivendo em condições sub-humanas, disputando comida com cães. Bem, essa mulher busca encontrar um pouco de comida para o grupo, quando consegue quase é linchada pela população cega, mas consegue escapar. Ela senta-se numa escadaria para descansar e observa os cães comendo uma pessoa morta e demais dejetos. Um cão aproxima-se dela e lambe seu rosto. Ela acaricia o cão: ela gosta de cães assim como ama os seres humanos. Reune o grupo em sua casa, todos se banham, almoçam em harmonia, em comunhão. Todos estão felizes. Nesse momento um dos cegos volta a enxergar. Parece que o amor dessa mulher pelas pessoas, seu cuidado, seu carinho, serviu como antídoto para que as cores voltassem a se distinguir no branco. As pessoas voltariam a enxergar.


Vocês viram que estou falando do filme Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meireles, baseado no livro de José Saramago. Revi ontem o filme no canal Telecine Cult e gostei bem mais do que da primeira vez. Antes, o excesso de branco me incomodou, não havia percebido a intenção do diretor em passar a sensação de cegueira que os personagens sentem. Achava que o filme perdia um pouco da beleza estética, o excesso de branco deixava o filme meio "sujo". Mas isso foi intencional e não desmerece o talento do diretor. Os americanos não gostaram do filme. A imprensa internacional o recebeu com frieza. Uma associação norte-americana de deficientes visuais protestou, sob alegação de que o filme era preconceituoso, já que a cegueira das pessoas contaminava umas às outras. E o filme acabou não fazendo sucesso. Uma pena. Para os americanos o que conta é um filme de ação que não leve a grandes interpretações metafóricas sobre os males da humanidade.

Saramago e também Meireles não pensaram numa provável raiz preconceituosa dos vários conceitos de cegueira, quando fizeram suas obras. Besteira dos americanos. A mensagem do filme, no caso, é muito mais do que a maneira de enxergar um filme preconceituoso. Saramago, escritor, ateu e comunista, é conhecido por despertar em seus leitores diversos questionamentos morais e existenciais que habitam em cada um de nós. Acho que a associação dos deficientes visuais norte-americana ficou contaminada pela cegueira branca.

De uruguayos y argentinos

Certa vez, em Florianópolis, a dona de um albergue onde eu me hospedara me dizia que o estabelecimento estava cheio de argentinos, o que colaborava para o aumento dos preços, devido a demanda - naquele tempo o dólar valia muito e nosso pré-real valia nada. Lá, os argentinos se faziam sentir falando alto, tomando conta do lugar com seu estilo barulhento. Um tempo depois perguntei a ela se os uruguaios não visitavam o albergue e ela disse que sim. A temporada deles era em março. Então me veio a pergunta infalível: quem eram melhores clientes, os argentinos ou os uruguaios? Para ela, os argentinos vinham em maior número, dava mais lucro por isso. Mas os uruguaios tinham outro tipo de humor, eram mais educados no sentido de que não extrapolavam no ambiente com falas altas. Eram mais tranquilos.


Uruguaios ou argentinos? Gosto dos dois. Gosto dos argentinos, quando estou em Buenos Aires, seu estilo "explosivo" colabora para fazer da metrópole um charme. Eles tem uma autoestima muito pra cima, se acham bom em tudo. São patriotas. Também são lutadores, quando se trata de reivindicar seus direitos. São politizados. Gosto dos uruguaios, quando estou em Montevidéu, quando vou à fronteira e tenho oportunidade de conversar com eles. Percebo que muitos falam bem português. Não o portuñol, o português. Cometem alguns erros de pronuncia, às vezes misturam um termo nativo na língua, mas desenvolvem bem o discurso. Isso é diferente do portuñol. Os brasileiros falamos, sim, o portuñol. Nos metemos a transformar as palavras terminadas em ão en ón e achamos que estamos falando espanhol. Deveríamos aprender a língua espanhola com mais carinho, estamos cercados de hermanos.

Mas voltando aos uruguaios, gosto deles por serem mais tranquilos em sua forma de tratar. Parece que não têm aquela pressa nervosa dos argentinos. Me identifico mais com os uruguaios, sendo gaúcho. Sempre tive a idéia, desde criança, de que um dia fizemos parte do Uruguai, até que os portugueses nos tomaram ao Brasil. Quarta-feira passada assisti ao programa da Katia Suman na TVCom e tive o prazer de escutar o uruguaio Sebastián Jantos. Música bonita, com toque moderno de folclore pampeano. Cantor do mesmo porte de Jorge Drexler, outro de quem gosto muito. Esse intercâmbio entre Rio Grande e Uruguai/Argentina nos está fazendo muito bem.

O homem criando a vida

Ontem assisti pela televisão à noticia de que o homem havia criado uma bactéria artificial que poderá, futuramente, contribuir para os avanços cientifícos em beneficio do homem. No mesmo telejornal entrevistaram, a seguir, uma professora pesquisadora da Usp, perguntando como ela via esse feito. Ela disse que o via com muito otimismo, visto que o homem estaria, pela primeira vez, criando a vida do "nada". Foi-lhe perguntado se não haveria o perigo de criação de um ser, um animal, algo que pudesse causar algum mal ao homem, bem como uma bactéria que se pudesse proliferar na natureza, causando estrago e mortes. Ela disse não acreditar nisso. Era preciso dar fé à ciência para descobertas importantes dessa natureza.

Eu penso como essa pesquisadora. Também acredito no ser humano e na ciência. A vida é maravilhosa com tudo o que o homem cria - ele fez e faz cultura - transformando e adaptando-se à natureza, para que vivamos com melhores perspectivas de vida. O mal existe. Pessoa há que faça o mal. Mas não é a desconfiança nem o moralismo religioso que deverá prevalecer para o progresso da humanidade.