domingo, 18 de dezembro de 2016

20. Quincas Borba

Rubião fitava a enseada, — eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.
- Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele. Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que parecia uma desgraça...

Quincas Borba é um romance realista. Não o realismo que reduz seus personagens a simples produtos da sociedade ou à sua carga genética. Trata-se de um realismo em vários níveis de leitura, com toques psicológicos, com uma ironia fina inteligentíssima. O excerto acima ilustra o fato de que Rubião, no presente momento, é um capitalista, pensando na transformação que sua vida tivera, quando ficou rico. Rubião recém entrou no mundo dos que avaliam as coisas sob o ponto de vista do lucro. Mas há um abismo entre a consciência e os sentimentos de Rubião (que acabará levando-o à loucura).

Quincas Borba começa em1867 e termina em 1871. Rubião,  modesto professor primário, herda do filósofo Quincas Borba uma fortuna, com a condição de cuidar de seu cachorro, a quem dera o próprio nome. Entretanto, com o dinheiro herda também a loucura do amigo. Sua fortuna se esvai em ostentação e no sustento de parasitas; mas serve sobretudo como capital para as especulações comerciais de um arrivista hábil, Cristiano Palha, por cuja mulher,Sofia, Rubião era apaixonado. Palha usa a sensualidade de Sofia, sua esposa, para atrair Rubião e, assim, espoliá-lo. Ao contrário de Bentinho, que queria esconder Capitu dos olhares alheios, Palha tira prazer da inveja dos outros. Sofia também gosta de atrair os homens, anda habitualmente muito decotada, apesar de seus desejos de um possível adultério fiquem apenas na fantasia.

No fim, pobre e louco, morre abandonado. Os fracos e os puros foram sutilmente manipulados como coisas e em seguida são postos de lado, mostrando os crápulas como triunfadores. Rubião observava em sua solidão, que o cachorro que  maltrata vez ou outra, era humano. Seria o Quincas Borba cachorro o próprio filósofo Quincas Borba que começa como homem, enlouquece e acaba como um pobre bicho, fustigado pela fome e maus tratos.

É do filósofo e louco Quincas Borba o conceito de Humanitas, que encerra o  princípio de substância ou vontade. O encontro das duas manifestações, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas,  porque a supressão de uma é condição da sobrevivência da outra, Daí o fato de Quincas Borba afirmar o caráter benéfico da guerra. Ele cita a Rubião a famosa expressão "ao vencedor, as batatas". Supõe o leitor um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói.  Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
Ao Palha, a fortuna de Rubião. A este, a loucura, a miséria e o esquecimento.
             
                              paulinhopoa2003@hotmail.com
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Machado de Assis. Quincas Borba. SP, Penguin/Companhia, 2012, 360 pp,  

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