domingo, 18 de dezembro de 2016

5. Os Lusíadas

Os Lusíadas designa os portugueses. Camões propõe-se em seu poema épico, a contar toda a história de Portugal, desde sua formação até a descoberta do caminho marítimo para as Índias, com Vasco da Gama como herói. Celebra-se, assim, a glória da epopeia portuguesa das grandes navegações, o esplendor de Portugal, a fama dos heróis lusitanos com o objetivo de propagar a fé cristã entre os infiéis e de aumentar o Império português.  O poema é composto de dez cantos.. A ação motivadora é a viagem de Vasco da Gama, numa rota marítima como as de Ulisses e Enéias. Na viagem de Vasco da Gama em sua descoberta do caminho marítimo para as Índias, temos uma sequência cronológica dos acontecimentos. Como unidade de ação, valeu-se de algumas táticas greco-romanas que lhe forneceram protótipos de uma intriga entre deuses apaixonados: o embate entre Vênus, protetora dos portugueses e Baco, inimigo deles, posto que Baco temia perder as glórias de ter sido ele o já conquistador do território a ser descoberto pelos lusos. 

As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana*,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

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E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

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Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
*Taprobana = Ceilão/Sri Lanka

No canto I, Camões revela que vai tratar dos feitos gloriosos dos portugueses, pedindo inspiração às musas do Tejo e dedicando o poema a D. Sebastião, rei de Portugal. Há o concílio no  Olimpo para o pronunciamento dos deuses sobre a empreitada, posicionando-se Baco contra os portugueses (quer o deus que caiba a ele a glória de ter descoberto os territórios da Ásia) e Vênus pronuncia-se em favor dos portugueses. Essa briga entre os deuses é que vai alimentar a ação narrativa, com percalços e adversidades para o herói Vasco da Gama. No canto II, o rei de Mombaça (Quênia) convida a frota de Vasco da Gama para entrar no porto. É uma armadilha de Baco. Vênus salva os portugueses, pedindo a Júpiter que convença a população de Melinde (Quênia) a receber bem a esquadra de Vasco da Gama. Lá, Vasco da Gama é convidado a contar a história de Portugal e de seus feitos marítimos.
No canto III, Vasco da Gama conta da Europa e da origem de Portugal e de suas armas, da relação bélica com os mouros, destaca os reinados dos diversos reis de Portugal, incluindo D. Afonso IV e o episódio importante de Inês de Castro:
Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste, e dino da memória
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de ser morta foi Rainha.

Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus formosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra ua fraca dama delicada?

Traziam-a os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava

D. Afonso IV, o Bravo, reinou em Portugal de 1325 a 1357. Foi o grande responsável pela expansão da marinha portuguesa. Seu filho, D. Pedro, toma-se de amores por Inês de Castro, jovem de Castela de origem plebeia. O rei não vê com bons olhos a relação dos dois e afasta o príncipe de Inês, forçando-o a casar com outra. A peixão do príncipe por Inês não morre e os dois continuam se correspondendo. Com a morte da mulher, D. Pedro traz Inês de Castro para a Corte e os dois têm quatro filhos. D. Alfonso decide, então, aproveitando-se da ausência do filho, matar Inês de Castro.

Segunda parte

No canto IV, Vasco da Gama continua narrando a história portuguesa ao rei de Melinde, falando de D. João I, mestre de Avis, a batalha de Aljubarrota, a conquista de Ceuta, o reinado de D. Duarte, as conquistas da África, o sonho de D. Manuel sobre o rio Indo e Ganges, que levaram o rei a escolher Vasco da Gama para a viagem. Vasco da Gama narra ao rei o episódio do velho do Restelo, que crítica a sede de poder dos portugueses:

94
Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
95
- "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
96
- "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
97
- "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
Camões inclui na narrativa uma voz que se manifesta em desacordo com o empreendimento português. A armada portuguesa num clima de festa está pronta para a partida, quando um velho "de aspecto venerando" ergue a voz mostrando seu descontentamento, atacando ponto por ponto os ideais do sonho português de conquistas. A fama, diz ele, nada mais é que vaidade, a aura popular que os poderosos querem provocar, com os grandes descobrimentos  é uma fraude para iludir o povo. A glória vã dos poderosos só lhes proporcionará danos, ocasionando perda de homens, enfraquecimento da nação, restará ao fim velhos, mulheres e órfãos desamparados.
A exaltação da exaltação dos feitos humanos, característica do Renascimento, é desafiada pelo conservadorismo, pelo castigo da ambição desmesurada de elevar-se a patamares divinos.

No canto V, Vasco narra a partida de Belém, a passagem pelo Equador, a visão deslumbrante no céu do Cruzeiro do Sul e da Ursa Maior, a primeira tempestade marítima, o desembarque em Santa Helena, o episõdio famoso do surgimento do gigante Adamastor perto do Cabo das Tormentas, a chegada a Moçambique, Mombaça e Melinde.

37
 Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando hüa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Hüa nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

38
Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
"Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?"

39
Não acabava, quando hüa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

40
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

41
E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados de estranho ou próprio lenho;

42
Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do húmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pola terra
Que inda hás-de sojugar com dura guerra.

43
Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas!
E da primeira armada, que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei de improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo!

O que parecia ser o prenúncio de uma tempestade passa a ser o prenúncio para o aparecimento do monstro, que causa medo e terror aos navegantes portugueses. Significa o impasse entre o velho e o novo. Dobrando o Cabo das Tormentas um mundo novo surgirá, mas isso lhes trará dificuldades imensas. Adamastor falando assim a Vasco da Gama, na verdade não está fazendo uma profecia, mas colocando em Vasco e na tripulação, fatos que poderiam acontecer em decorrência de acontecimentos passados. Afinal, Bartolomeu Dias, o descobridor do Cabo das Tormentas, acabou sucumbindo logo após tê-lo descoberto.

A idéia de se construir uma epopeia contando o feito dos heróis portugueses, a partir do descobrimento do caminho marítimo para as Índias já vinha sendo pensada por nobres e reis. E coube a Camões levá-la a cabo a tarefa.
Utilizei-me na elaboração deste texto da edição da Lpm, com os comentários valiosos de Tane Tutikian. Também me serviu de base anotações de classe dos professores Óscar Lopes e José Antônio Saraiva.

                     paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Luís de Camões. Os Lusíadas. Porto Alegre, RS, LP&M, 2009, 336 pp, 

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