domingo, 18 de dezembro de 2016

24. Os contos de Tchekov

Já se passou quase um século desde que Tchecov escreveu seus contos, atuais e eternos. Momentos de vida, fragmentos arrancados do real, trechos da existência cotidiana. A distância no tempo e no espaço não diminuiu ou empalideceu a força dessas estórias ou a emoção que sentimos ao lê-las. E isto acontece porque Tchecov - como todos os grandes gênios criadores - trata da essência do ser humano. As figuras que nos apresenta são gente como nós, como nossos amigos, vizinhos e conhecidos. As emoções que sentem são iguais às nossas. E as tramas descritas em cada um de seus contos - apesar de situadas na Rússia czarista - estão acontecendo à nossa volta e conosco mesmo.

Tchecov foi um realista no sentido de expressar em seus textos a "verdade absoluta e honesta". Quanto mais objetivo, mais forte. Suas histórias respiram realidade, seus personagens palpitam vida sem um só efeito supérfluo com toda a riqueza e profundidade de seu conteúdo humano. Tchécov, no entanto, jamais se permitiu qualquer tipo de pieguice, de sentimentalismo.  Mantinha um olhar desarmado de idealizações de qualquer espécie.  Muitos de seus contos possuem uma atmosfera de tragédia silenciosa, um beco sem saída, numa atmosfera de tristeza difusa, às vezes revestidas de ironia e humor.

Entre os contos maravilhosos de Tchekhov destaco O professor de letras, em que Mikítin toma-se de amores por Maniússia, de 18 anos, que era apaixonada por cavalos. Passa a fazer visitas constantes a sua casa e os dois acabam casando. A irmã mais velha, entretanto, mantém-se solteira e isso acaba causando algum transtorno à família. Ao longo de sua vida conjugal atrelada a seu contato social, foi dando-se  conta de que era, na verdade, um professor de literatura medíocre, que nunca tivera talento para o magistério. Na conversa dos demais, passou a perceber o conteúdo vazio de suas conversas, em que as pessoas só se ocupavam em dissimular a ignorância e o descontentamento com a vida. Míkitin, assim, passa a ter vontade de largar tudo, voltar a Moscou e revisitar o quarto de pensão em que morava quando era solteiro.

Em O assassinato,  um garçom decadente que já tivera vida melhor, serve em uma estalagem onde se cruzavam duas estradas de ferro. Lá, viviam pessoas igualmente decadentes e derrotadas na luta pela vida. Um dia acontece um assassinato, presenciado por esse garçom. o assassino oferece-lhe dinheiro em troca do silêncio. O garçom reluta mas aceita o dinheiro. Mesmo assim o assassino acaba descoberto e preso. Tchékhov descreve a vida miserável e desumana com incrível realismo. O escritor havia conhecido a prisão onde narra a parte final do conto.

Em Os mujiques, temos a classe camponesa apodrecida pela miséria e abandono do poder público. A grande maioria é constituída de analfabetos. Os poucos que aprendem a ler, geralmente os homens, partem para Moscou para trabalhar em casas abastadas. O mujique, isto é, o camponês russo, hipoteticamente vivia de seu próprio trabalho, depois que a servidão foi abolida na Rússia da segunda metade do século XIX. Na prática, entretanto, muitos viviam como escravos livres, pela falta de incentivo para gerarem sua própria subsistência com recursos próprios. A religiosidade transparece de forma ineficaz para deter a crueldade presente nessa classe social.

O homem extraordinário retrata a vida de um avarento compulsivo. Numa madrugada, uma parteira é despertada por um homem que quer contratar seus serviços, mas exige que ela lhe dê o preço antecipadamente, quer pagar-lhe de forma justa, nem um centavo a mais ou a menos. Ela lhe dá o valor, ele acha demais. Ela baixa um pouco, mas ele lhe quer dar menos. Pelo valor que lhe quer pagar, ela prefere então fazer de graça. Ele quer ser justo e pagar o que ele acha o correto. Ela recusa. Ele vai embora mas volta em seguida, e decide pagar o que ela havia pedido. A parteira realiza o parto, mas observa que o homem permanece calado e inexpressivo. A única que coisa que diz, ao ver o filho, é dizer: "Pois é, graças a Deus, há um ser humano a mais no mundo". Quando ele se afasta , a parteira fica sabendo da parturiente que seu marido é um homem justo e bom, ponderado e sensato economicamente, mas tudo isso de forma tão extraordinária que todos sentem-se desconfortáveis ao lado dele. A mulher e os filhos lhe têm medo, apesar dele nunca bater e grita com ninguém. A parteira sai da casa tão atordoada que no caminha se dá conta de que não havia cobrado a conta.

São centenas de contos e algumas novelas. Não esqueçamos de que Tchékhov foi um dramaturgo de sucesso com O Jardim das Cerejeiras, A Gaivota, Tio Vânia e As três irmãs. O diretor russo Stanislavski gostava de montar suas peças.


Os contos comentados aqui foram retirados dos livros Um homem extraordinário e outras, da LPM, com tradução de Tatiana Belinki; O assasssinato e outras histórias, da Cosac Naify, com tradução de Rubens Figueiredo e Treze contos de Tchékhov, da Ediouro, com tradução de Maria Jacintha. Os treze contos foram relançados pela Edibolso (Record). A outra seleção dos contos de Tchékhov feita e traduzida por Boris Schneiderman pela Editora 34, A dama do cachorrinho e outros contos,  está na fila de leitura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário