domingo, 18 de dezembro de 2016

A consciência de Zeno

Uma confissão escrita é sempre mentirosa. Mentimos em cada palavra toscana que dizemos! Podemos falar com naturalidade das coisas para as quais temos frases prontas, mas evitamos tudo quanto nos obrigue a recorrer ao dicionário! Dessa mesma forma, escolhemos de nossa vida os episódios mais notáveis. Compreende-se que ela teria uma feição realmente diversa se fosse narrada em dialeto.
O tema de A consciência de Zeno é a psicanálise, subvertida no romance de forma irônica.  A psicanálise também influencia a estrutura narrativa, pois não é uma obra escrita em ordem sequencial, mas a partir do fluxo da memória em função do tratamento a que Zeno se submete. Quando decide escrever sua autobiografia, incentivado por seu psicanalista, já está velho, os efeitos da Primeira Guerra já se fazem sentir no Trieste, região onde mora.

O motivo condutor da história é o fumo. O fumo é o grande problema de Zeno.Está sempre fumando o último cigarro, mas nunca pára. Chega a anotar datas de que fumou o último. O problema de Zeno é que o último cigarro que fuma é sempre o mais prazeroso.
Zeno procurou o psicanalista porque queria curar-se de uma doença e precisa, assim, descobrir as causas. Achava que a  doença é uma convicção e ele nasceu com essa convicção. Não se lembraria da que contraiu aos vinte anos se não a tivesse naquela época relatado a um médico. Curioso é como recorda melhor as palavras ditas que os sentimentos que não chegaram a repercutir no ar. O doente imaginário é um doente real, mais intimamente que os demais. Isso porque seus nervos são propensos a acusar uma doença quado esta não existia, ao passo que sua função normal seria a de dar um alarme por meio da dor para provocar a busca de alívio. Só os doentes sabem algo sobre si mesmos.

Assim vamos conhecendo Zeno. Era um zero à esquerda. Um inepto. Nunca precisou dar duro no trabalho, pois tinha dinheiro (um tutor cuidava de suas finanças). Vacilou entre estudar Química ou Direito. Decidiu-se ao Direito, achando que teria sido melhor fazer Química. Nunca toma decisões, e quando toma, vai procrastinando até que alguém tome por ele. Zeno se apega a um comerciante (que fica sendo meio um pai adotivo) e apaixona-se por Ada, a mais bonita das três filhas em idade de casar. Na noite em que se apresenta para pedir a mão de Ada, acaba pedindo a três em casamento e sobra-lhe a mais feia, a quem não ama. Casa-se, e aparece a amante. Um dia, a amante quer conhecer a mulher de Zeno. Como tem vergonha de apresentar-lhe a esposa, apresenta-lhe Ada. No final, acaba afastando a amante, apresentando a ela o homem que acabaria sendo seu marido.
Zeno passa o tempo todo querendo achar a cura. No final fica isolado no Trieste e acaba se dando bem, através da especulação financeira.  No final, dá-se conta de que não é só ele que está doente, a sociedade é que está doente.

Tem muito mais coisa interessante na autobiografia de Zeno.Quem apresenta a história é o psicanalista dele. Como Zeno havia interrompido o tratamento, publicou a autobiografia à revelia do paciente. Nota-se de cara tratar-se de um médico que não merece credibilidade, visto que propõe dividir os direitos autorias da autobiografia, se ele voltar ao tratamento que havia interrompido. A tática usada para o tratamento era incutir em Zeno que ele tinha complexo de Édipo, fato que Zeno nunca assimilou. Buscava incessantemente a razão para isso e chegou à conclusão de que só podia ser o tapa que dera no pai, de forma um tanto ocasional, pouco antes do pai morrer.

Italo Svevo (1861/1928) era o pseudônimo de Aron Hector Schmitz, depois italianizado para Ettore Schmit.Nasceu em Trieste, quando pertencia ao Império Austro-Húngaro. O pai era de origem austríaca e a mãe italiana. Fez os estudos iniciais na Áustria. Em casa falava o dialeto triestino. A escolha do pseudônimo resume as duas culturas a que se viu envolvido. É o primeiro autor italiano a usar a teoria de Freud na literatura. Transfigura comicamente a psicanálise e a utiliza no livro. Mas não a subverte por desconhecimento Era estudioso do psicanalista austríaco.

Quem incentivou Svevo a publicar A consciência de Zeno foi o escritor irlandês James Joyce, de quem era amigo. Joyce morou um tempo em Trieste e foi professor de inglês de Svevo.
Excelente livro.

Tradução de Ivo Barroso.
                       paulinhopoa2003@hotmail.com

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Italo Svevo. A consciência de Zeno. Rio, Nova Fronteira, 2015, 400 pp. R$ 35,90

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