domingo, 18 de dezembro de 2016

27. Em busca do tempo perdido

No caminho de Swann, o  primeiro volume de Em busca do tempo perdido consta, em realidade, de três romances. O primeiro, "Combray', em forma de devaneio, descreve a infância do terno e apaixonado menino que era o próprio autor, bem como a vida de veraneio numa pequena cidade, e as carinhosas relações com a mãe e a avó. Surge então a figura de Swann, estabelecendo a ligação com Paris. Em "Um amor de Swann", temos a história da paixão desse homem por Odette, antiga cocote. Swann tinha  dinheiro, mas considerado um canalha, por se envolver com mulheres de baixa condição social. Os dois casam, causando mal estar na comunidade. O assunto de "Nome de lugar: o nome", é o amor precoce do menino por Gilberta, filha de Swann e Odette. Completas em si mesmas, essas histórias foram, contudo, parte integrante de um conjunto mais amplo, cuja estrutura final só podemos compreender e admirar ao findarmos o último dos 7 volumes da obra monumental de Proust.
Tradução de Mário Quintana

Em À sombra das raparigas em flor, o segundo volume,  vemos desenvolver e depois fenecer o amor de Marcel por Gilberta, enquanto que Swann, após o casamento, vai cada vez mais se aburguesando e enchendo-se de preocupações. Odette vence os preconceitos da alta sociedade, que ainda a mantém afastada, mas reconhece e acompanha sua ascensão. Aprendemos a conhecer melhor o escritor Bergotte, Norpois, o diplomata, e o grande médico Cottard. Na praia de Balbec, onde fora com a avó, Marcel admira um grupo de amigas: Albertina, Simonet, Andreia, Gisela e Rosemonde, por quem se sente atraído. Torna-se também amigo do pintor Elstir, cuja experiência artística o interessará sobremaneira. Trava conhecimento, ainda, com o Barão de Charlus, irmão do Duque de Guermantes, e com o sobrinho destes, Roberto de Saint-Loup, penetrando, assim um pouco e de longe naquele mundo que se lhe afigurava inacessível e maravilhoso.
Tradução de Mário Quintana

No terceiro volume,  O caminho de Guermantes,  ação se passa em Paris, Proust esboça da sociedade parisiense um quadro de esplendor deslumbrante. Como figura central sobressai Oriana, Duquesa de Guermantes, venerada de longe pelo tímido autor. Este mantém estreita amizade com Roberto de Saint-Loup, que, por sua vez, toma-se de paixão pela medíocre atriz Raquel. Um episódio comovedor é a morte da velha avó, à qual o autor estava ligado por fervoroso afeto. O desempenho da grande atriz trágica Berma, no papel de Fedra, torna-se o ponto alto da arte descritiva de Proust neste romance, em cuja tessitura, colorida e rica como a própria vida, encontramos o vaivém de inúmeras personagens e de seus dramas.
Tradução de Mário Quintana

O quarto volume, Sodoma e Gomorra,  envereda pela difícil análise da inversão sexual, assim como apresenta Proust, na figura do Barão de Charlus e na de Albertina. A sociedade francesa, na época de Proust, considerava a homossexualidade um vício, uma doença do caráter, mas comportamentos afeminados como o do Barão de Charlus e suas aventuras com o músico Morel eram aceitas na alta sociedade em que transita o narrador do romance,  assim como a desconfiança de alguns nobres casados que mantinham relações  homossexuais com gigolôs, de forma discreta. A bissexualidade de Albertina é vista com preocupação por Marcel, que a ama e quer casar-se com ela. O cenário desse quarto romance se passa, em sua maior parte, em Balbec, onde Marcel retorna para reavivar a lembrança de sua avó, recém morta. E seu convívio nos salões dos Verdurin e dos Cambremer.
Tradução de Mário Quintana

A Prisioneira apareceu em 1923, depois da morte de Proust. Apesar das desavenças já tidas com Albertina, e da revelação de alguns aspectos da vida que ela levava, o narrador sente que já não lhe é possível prescindir de sua presença. Comunicando a sua mãe a decisão de casar-se com Albertina, ele a leva para Paris e passa a viver com ela sob o mesmo teto, para desgosto da mãe que, entretanto, não tem ânimo para reprovar-lhe o procedimento. Embora já vivendo juntos, ele percebe que o seu amor está-se encaminhando para o cansaço, e que só os ciúmes o mantém ligado à noiva. Várias vezes lhe vem a ideia de abandoná-la, de libertar-se de Albertina, para dedicar-se inteiramente à arte. Mas, obsedado pelo passado da amiga, conserva-a enclausurada e sob uma vigilância constante que a transforma numa prisioneira. Albertina reage e sempre que possível foge-lhe ao controle. O narrador sabe que um dia terá de separar-se dela. Mas a ideia de que ela pode abandoná-lo, por iniciativa própria, o desespera. Ele sente que vai perdê-la, mas quer decidir sobre o momento da separação. Afinal, no momento em que decide abandoná-la definitivamente, Francisca, a fiel empregada, vem comunicar-lhe que Albertina partiu. Para sempre.
Também neste tomo, morre Bergotte, e desenrola-se em tom cada vez mais dramático, as relações do Barão de Charlus com os Verdurin. Tratados antes pelo Barão com certa reserva, agora se vingam dele, intrigando-o com Morel, seu amante.
Tradução de Manuel Bandeira

A fugitiva,  o sexto volume, nos apresenta o narrador abandonado por Albertina. Esse desfecho, em vez de trazer-lhe a almejada libertação, vem apenas agravar-lhe as dúvidas e tormentos, e ele procura, para fugir à realidade que o abate, embalar-se na ilusão de que ela voltaria, talvez no mesmo dia. Mas Albertina morre, vítima de um acidente. E o narrador, ao descobrir que ela era realmente culpada de todas as faltas suspeitadas, sofre e se consome no inferno de um ciúme póstumo sem limites. Mas todos esses padecimentos , pouco a pouco vão cedendo lugar ao esquecimento. Instala-se nele a indiferença, que é o princípio da morte. Nesta altura, ele já não é o mesmo, não é mais aquele que amara Albertina. E a verdade que brota neste volume denso de inquietação e de humanidade, é que só cessamos de sofrer porque mudamos continuamente, porque, à medida que a vida flui, nos tornamos estranhos a nós mesmos, até desfigurar nossa identidade e  nos perdermos irremediavelmente no tempo. Gilberta, filha de Swann finalmente é recebida no lar dos Guermantes, onde durante muito tempo seus pais não puderam frequentar, devido ao passado de Odette. Agora Gilberta está podre de rica e casa-se com o amigo de Marcel, Roberto Saint-Loup, cuja identidade homossexual é revelada no final deste tomo.
Tradução de Carlos Drummond de Andrade

O tempo redescoberto, último volume da longa obra de Marcel Proust, adquirem relevo mais nítido os momentos essenciais dessa busca do tempo perdido, Proust  já nos  delineara uma fresta através da qual pudemos perceber uma lenta tentativa de reconstrução de um universo contendo uma outra realidade, mais profunda e mais vasta que esta da superfície a que estamos habituados pelos nossos sentidos, um universo que está do outro lado das aparências e contém, no mistério por vezes entrevisto de seus abismos, a essência fundamental das coisas. Essa longa tentativa vem avançando através da obra que tem as dimensões de toda uma vida dedicada à recaptação do tempo morto, para chegar finalmente a esta milagrosa recuperação, ao tempo descoberto. Tornam-se mais vivas, presentes e atuantes,  as sondagens involuntárias através do bolinho molhado no chá de tília; dos degraus desiguais do batistério de São Marcos, em Veneza, e da entrada da residência dos Guermantes, em Paris; daquela passagem da sonata de Vinteuil; do tinir da colher contra a porcelana da xícara; do áspero contato do guardanapo despertando  o azul sobrenatural do mar em Balbec; de todos os momentos em que Proust mergulha em si mesmo para reencontrar a misteriosa essência do tempo sedimentada em sua memória afetiva. Aqui, o escritor encontra a outra dimensão da vida, aquela que, atravessando a bruma do tempo, talvez participe do enigma da eternidade. É neste tempo que Marcel Proust repousa, depois de nos haver dado esse maravilhoso fruto que esgotou toda sua substância, e foi a razão de sua vida.
Tradução de Lúcia Miguel Pereira
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Marcel Proust. Em busca do tempo perdido. 7 volumes,Globo Livros

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