domingo, 18 de dezembro de 2016

6. Dom Quixote

Em Dom Quixote, Cervantes (15457/1616) faz o contraste entre a aparência e a realidade, na figura de Don Alonso Quijano,  um personagem maravilhoso por conter em si um paradoxo: é bom e ridículo. Leitor assíduo de livros de cavalaria , de repente começa a se imaginar um cavaleiro andante. Enlouquece, mas sem perder necessariamente a razão.Seus discursos são enlouquecidos, quando trata de cavalaria, e sensatos, quando se trata de outras coisas.  Na intenção de viver sua fantasia, trata de conseguir um cavalo, mais tarde um escudeiro e um amor impossível. E  passa a se chamar Dom Quixote de La Mancha.

A primeira saída de Quixote de sua aldeia, para viver suas aventuras, foi de forma solitária. Ao chegar a uma venda, dizendo-se cavaleiro, faz com que os frequentadores do lugar armem uma paródia das festa solenes dos livros de cavalaria, onde armam o herói  com toda pompa e fervor religioso. Quixote jura defender os fracos, a justiça e os crentes a Deus.  Assim, passa a ter sua espada e esporas para cavalgar seu cavalo Rocinante. A partir daí, o romance vai transcorrer centrado nesse equívoco. As pessoas que cruzarão com Quixote em sua jornada sabem tratar-se de um louco, mas interagem com ele, compondo inúmeras farsas muito engraçadas. 

A segunda saída do herói se dá do capítulo VI ao LII, fechando a primeira parte da narrativa. Dom Quixote se empenha em encontrar alguém a acompanhá-lo em sua nova jornada, servindo-lhe de ajudante. Acaba encontrando em Sancho Pança essa figura, um sujeito bom, ingênuo e parvo, o único que parece acreditar na veracidade de suas loucuras. Quixote lhe promete uma ilha para ser governador, caso saiam vencedores de suas batalhas.  A partir daí, aparecem a aventura dos moinhos de vento, que Quixote vê como terríveis gigantes a serem derrotados. Encontram-se depois com uns pastores de cabras que lhe contam a história de Grisóstomos, jovem rico que se toma de amores por Marcela, pastora órfã. Marcela recusa-se a casar com o jovem e este morre de infelicidade. Depois, há o encontro com um rebanho de ovelhas, que a imaginação de Dom Quixote converte em exércitos. De outra feita, num ato de caridade, liberta um cativo dos grilhões impostos por doze homens perigosos.  Quando chegam a Sierra Morena, acompanham a comovente história de Cardenio e Lucinda e Fernando e Dorotea. Essa história segue por vários capítulos da primeira parte da narrativa. Cardenio ama Lucinda e Fernando está comprometido dom Dorotea. Fernando decide abandonar Dorotea e ficar com Lucinda. Cardenio e Dorotea protagonizam sua desilusão amorosa coadjuvado por Quixote, Sancho e outros moradores do lugar. O relato dos dois faz Quixote pensar em ter sua amada, e decide escrever uma carta à figura idealizada de Dulcineia del Toboso. O cura, o barbeiro e Dorotea,  para apaziguar Quixote, lhe contam a história da princesa Micomicona, uma invenção para tentar levar Quixote de volta a sua cidade e fazê-lo recuperar a razão. Dorotea representa a princesa e trata de satisfazer todas a dúvidas de Quixote. Depois de muitas aventuras e histórias intercaladas, ele é levado de volta para sua cidade para que se cure     de sua loucura e volte a viver tranquilamente.

Cervantes, que até então se punha como um narrador erudito que recopilava dados de outros autores para formar sua história, passa a introduzir um narrador árabe chamado Cide Hamete Benengeli, que escrevera a História de Dom Quixote de La Mancha. Desde então, até o final da narrativa, Cervantes oferecerá a seus leitores a tradução desse suposto texto árabe, como forma de parodiar o estilo dos livros de cavalaria. Há outras paródias como a do Amadis de Gaula, a dos Dez livros de fortuna de amor, de A Araucana  e de Orlando Furioso, de Ariosto. No caso de Orlando, este enlouquece de amor, ao passo que Quixote enlouquece da leitura.

Na segunda parte, dom Quixote e Sancho saem da esfera da realidade a que pertenciam no livro primeiro, para vagar em carne e osso, saudados pelos leitores de sua história, por um mundo que, também ele, representa um grau mais alto de realidade em relação ao mundo impresso. Quixote tem um discurso humanista quando discorre sobre a educação, e sobre a poesia, todos repletos de razão, sentido de justiça, humanidade e nobreza formal. Quixote pode ser considerado louco, mas não é tolo. Tem a história que narra as bodas campestres da belíssima Quitéria com o rico Camacho. Só que havia um noivo preterido, o valente Basílio. Quitéria e Basílio amavam-se desde crianças. Mas o pai da noiva força a filha a casar-se com Camacho. A história começa como uma tragédia, mas termina de forma bem humorada, pois trata-se de uma pantomima arquitetada por Basílio, para tentar impedir o casamento da amada.

A aventura do leão também é outro dos grandes momentos da narrativa de Cervantes. Trata-se de uma comédia patética que termina com a admiração do escritor pela loucura heroica de seu protagonista. Quixote encontra uma carroça que leva feras africanas. Quixote desce de Rocinante empunhando o escudo e sua espada de araque, pronto para lutar com o leão. Exige que lhe abram a jaula para que o animal saia. O bicho olha para Quixote com cara de aborrecido, dá-lhe as costas e volta a se deitar na jaula. Quixote fica indignado com a atitude do animal, pede que o açoitem para que ele venha para a luta, mas o animal não lhe dá a mínima.O heroísmo de Quixote é anulado, não fosse ele pensar que a grandeza de seu coração já está suficientemente demonstrada. Nenhum guerreiro está obrigado a mais do que chamar o inimigo para o combate e esperá-lo em campo aberto. Se o outro refuga o combate, que a infâmia caia sobre ele! A partir de então, Quixote passa a ser outorgado com outro título, o fidalgo dos leões.

Um romance será grandioso, quando mais vida interior tiver. E há muito mais, no romance. Dom Quixote é apresentado, finalmente, à figura de Dulcineia del Toboso, figura idealizada por Sancho Pança para satisfazer as fantasias de seu amo. Ao vê-la, entretanto, Quixote percebe que aquela mulher feia e de maus modos não poderia ser sua amada Dulcineia, a menos que algum mago a tenha transformado daquela maneira para enganá-lo. Quixote agora passa a ver a realidade tal como ela é, buscando enganar-se de que poderes mágicos transformam alhos em bugalhos.

No final, Quixote recobre a sanidade, dorme profundamente, e ao despertar está curado, por misericórdia divina. Seu entendimento está livre do mundo nebuloso da cavalaria. Quixote reconhece a própria loucura e não quer mais ser chamado de Dom Quixote de La Mancha, mas Alonso Quijano, cidadão comum.
"Já tenho o juízo livre e claro, sem as sombras tenebrosas da ignorância que sobre ele puseram minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de cavalaria. Já reconheço seus disparates e seus logros, e só me pesa que este desengano tenha chegado tão tarde, que sejam luz da alma. Eu me sinto às portas da morte, minha sobrinha, mas gostaria de encará-la de um modo que mostrasse que minha vida não foi tão ruim a ponto de me deixar com fama de louco, porque, apesar de eu tê-lo sido, não gostaria de confirmar essa verdade e minha morte. Vamos, minha amiga, chame meus bons amigos, o padre, o bacharel Sansão Carrasco e Mestre Nicolás, o barbeiro que quero me confessar e fazer meu testamento".

No testamento, Dom Quixote deixou as suas posses para a sobrinha Antônia Quixana. Se ela quiser-se casar, que case com homem que deteste livros de cavalaria. Se por infortúnio isso viesse a acontecer, a sobrinha perderia todos os bens deixados a ela naquele testamento.

Dom Quixote morre e assim acaba a história do cavaleiro da triste figura (ou triste semblante).

Tradução de Ernani Ssó

Imagens de Samuel Casal
      
                         paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Miguel de Cervantes. Dom Quixote - 2 volumes. SP, Penguin Companhia, 2012, 1328 pp. Preço médio de 80 reais, a caixa com os volumes novos.

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